diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Formas de vida
Abril é expansão. Os dias alargam-se, sendo o maior que podem, e lá se deita o sol, esticando-se, todos os fins de tarde, a ver se arranha as escarpas, cada vez mais a norte, lá para as Serras da Cabreira. Abril águas mil. Assim o dizem também, não é? Não podemos dizer que as águas tenham sido assim tantas, para que se justifique à risca o ditado, mas foram as que bastaram, equilibradamente regando os campos de manhã e de noite, e enchendo-nos os bidões com água da melhor que há: de PH neutro; com uma infinitude de leveduras selvagens; algumas algas e bactérias fotossintéticas (que vieram dos telhados musgosos); e muita vontade de conhecer a terra. A composição topográfica deste país - com as serras que, bem altas, o cortam ao meio - oferece-nos uma grande abundância de água. Uma água que, por cair aqui, não cai noutros sítios, infelizmente. Uma abundância que, por vezes, é de gestão matreira. É que esta terra brota água por todos os lados e, ainda que bem drenada, a quantidade é tanta, que as comunidades de plantas organizam-se em torno de uma extensa rede de pequenas máfias aquáticas, em que dominam as nossas favoritas - as angélicas - por entre as várias mentas, os vigorosos junquinhos e uma data de lamiáceas. Mesmo com tanta água para encaminhar, temos estado cada vez mais atentos aos milagres da precipitação. Quando o ar se sente húmido, quando as nuvens pesam, quando nos chega à pele a mais pequenina das gotas ou, vá lá, quando de rompante, começa mesmo a chover a potes, desatamos logo a correr para a recolha! Fazemos isto pois aqui, no noroeste ibérico, extensamente coberto por umbrisolos ácidos, a água terrestre acaba, ela mesma, por ser também ácida. Já a água da chuva - mais neutra e menos mineralizada - ajuda sempre a manter tudo no lugar. A longo prazo, os solos livram-se de sofrer com problemáticas concentrações salinas, e sempre deixam de ter azia. A chuva é um bem que cai do céu. Desperdiçá-la é das maiores parvoíces de sempre… Por acaso, ou não, quando viemos para cá de bicicleta - há umas semanas atrás - deu um dia perfeito; claro, cristalino, sem uma pinga que fosse, nem uma nuvem à vista. É isso mesmo! Decidimos trazer as bicicletas para cá para a Landra. Assim, facilitam-se as idas à vila, que fica ainda a uma meia hora daqui. Sempre que contamos esta estória a alguém, saem disparados os comentários: “ai que loucura!”; ou o típico “vocês são passados da cabeça”; ou ainda o mais insólito (ainda assim ocorrente) “mas isso é impossível!”. Bem, comparado com uma viagem que o Rodrigo fez, uma vez, de Londres a Colónia (na Alemanha), e da Colónia, de volta, mas para o Porto, esta - do Porto a Cabeceiras - não foi nada; foi como água. Essa viagem pela Europa foi cumprida, em tom de epopeia, sem bomba de ar, sem remendos, sem ferramentas, nem câmara de ar suplente, nem GPS, nem mapas, nem roupa suficiente, nem nada. Nem um problema [a não ser uma sede danada que, em pleno agosto, quase o matou no nordeste francês entre campos secos e maltratados, e uma sucessão de pequenas vilas abandonadas]. Desta vez, bem precavidos e com receio do que pudesse vir a acontecer pelo caminho, viemos carregados com um arsenal de equipamentos, e pronto, lá tivemos um furo a meio do caminho para dar uso às ferramentas! Estávamos mesmo a pedir… Também viemos sem mapas nem GPS. Viemos a seguir o sol, ou melhor, a seguir a nossa própria sombra. Saímos do Porto ao meio-dia, o que quer dizer que o sol estava a sul; as sombras a norte, portanto. Ao ir-se pondo o sol, as nossas próprias silhuetas - bem desenhadas no chão, por se fazer um dia incrível - guiavam-nos sempre, muito certas, em direção a Cabeceiras. Mas esta viagem não foi assim tão suave! Calma… Para além do furo (que o Rodrigo reparou num abrir e fechar de olhos, ao estilo fórmula um), chegados a Guimarães, a Sara achava que já não tinha joelhos, mas ainda nos faltava mais de metade do caminho. A chegar a Fafe, entrámos sem querer numa via rápida [não digam nada à polícia!] e, ao demorarmos mais do que tínhamos planeado, o sol escondia-se por detrás das serras. A verdade é que já havia pouca luz na estrada, e não nos servia a lua, pois estávamos na sua fase errada… A páginas tantas, estávamos em montanhas que nunca mais paravam de subir e que já nem de bicicleta se faziam. Estávamos agora a pé, sem sol, e com algum medo (não infundado), de sermos abordados por uma matilha de lobos. O cansaço e a altitude, crescentes, combinavam-se na forma de incrementais calafrios, desmoralizantes. Nas grandes alturas, em que ofegar é a única forma de respirar, e as nuvens, abaixo dos nossos pés, nos faziam acreditar que aquela subida nunca mais teria fim, entrávamos, inesperadamente, pela malha urbana adentro, que as Terras de Basto exibiam, mesmo ainda nos montes, a escorrer, caminho a baixo, via Cabeceiras. Os travões da bicicleta do Rodrigo, que foram comprados numa loja de ciclismo com mais de cem anos na Maia, são vintage e, talvez por isso, guincham que é uma maravilha… A descida foi pontuada com longas notas intermitentes, bem enervantes, de borracha rija e alumínio barato. No fim de nove pedalantes horas, dormimos que nem pedras, na nossa grutinha de pedra; e foi a última vez. Há uns dias, a Catarina - amiga da Sara - veio-nos visitar com os pais. Vieram ver o terreno, que não fica nada longe de uma casa que têm em Chacim, a cinco minutos de bicicleta daqui. Já tinham ouvido falar de que andamos a trabalhar muito, e de que estava tudo a ficar bem bonito, e queriam averiguar a situação. Ao chegarem cá em baixo, começaram-se logo a despir. A temperatura é, de facto, bem diferente daquela que lhes gelava os couros durante o inverno, aos setecentos metros de altitude. Aqui, aos trezentos, e num vale bem mais arborizado do que as serras lá para cima, as coisas são mais meigas e gentis. Uma geada que se preze, fica o dia todo a queimar as verduras e a fazer cair as flores dos antecipados Prunus, coitados. Aqui, um friozinho que se veja azulado durante as primeiras horas da manhã, não dura mais que isso: algumas horas (e só de manhã) nalguns dias do ano apenas, e vai-se sempre antes que o sol beije as faces de todas as coisas verdes. Portanto, estamos numa liga mais leve, no que toca a enfrentar a firmeza do famoso “inverno nortenho”. Isto para dizer o quê? Que os pais da Catarina - um engenheiro e uma arquiteta - ao verem a casa; ao entrarem nela, e ao efetivamente começarem a pular sobre o soalho (para provar que estava de não se morrer nele), perguntaram-nos, surpreendidos, se tínhamos mesmo a certeza de que queríamos a continuar a viver numa furna… Eles achavam que o velho soalho da casa principal, embora mais usado que um hábito papal quinhentista, estava em muito bom estado e serviria, não só para suster o peso dos quatro cavalos que cá viveram, mas o nosso próprio e o das nossas muito minguadas tralhas. E foi assim que mudámos para a nova (velha, e verdadeira) casa. Em dois dias, abandonámos o palheiro, que tinha albergado umas quantas vacas. Passávamos, então, a ser como pessoas, no Carvalhal. Agora, com duas janelas para o mundo [o nosso habitáculo anterior não tinha abertura alguma], acordamos todos os dias com os avanços milagrosos da primavera. As giestas estão em flor, com aquele manto amarelo, embriagante, de cheiro doce tão sedutor; tudo cresce, espiga, refila, desponta e abunda; apenas os castanheiros, mais estivais, aguentam os seus botões, firmes, seguros, até que cheguem os dias mais quentes. No barraco em que dormimos até agora, as portas nem fechavam e faltavam-lhes grandes pedaços de madeira que, de podre, já se tinha convertido em solo a favor das silvas e dos fetos. Agora, para além de janelas, também temos portas (ainda que apenas uma tranque por dentro e faltem alguns vidros às janelas). Estas são as condições em que vivemos. Quando as descrevemos aos nossos conterrâneos, aqui em frente, na aldeia de Eiró, metade acha que somos os maiores, metade acha que somos um bocadinho parvos. A senhora Geralda - a tasqueira de cá da zona - diz-nos que não temos necessidade de comer as coisas que comemos; que em vez de comermos “ervas do chão”, deveríamos plantar couves e batatas. De facto, temos algumas couves galegas, que são tão deliciosas, e as batatas, daqui a nada, estão de se papar num bom caldo verde, mas é que nós gostamos mesmo das nossas magníficas “ervas daninhas”: temos sarralhas bem tenrinhas, e alguns dentes de leão aqui e alí, temos urtigas e lâmios (comicamente conhecidos por “chupa pitos”); as primaveras já nos alimentam desde janeiro; há labaças e angélcias mesmo à frente de casa; todos os muros ostentam os seus umbigos de vénus; as ajugas aparecem pelos prados lá em baixo fazendo frente às variedades de menta que persistiram o inverno todo, já se cheiram os orégãos frescos de longe e há azedas espalhadas por aí… O que não nos falta é comida por todo o lado. Sabemos que estas espécies são incrivelmente nutritivas e que nos fazem muitíssimo bem! As outras pessoas já quase nem as reconhecem, pois há muito que as expulsaram dos seus terrenos, infelizmente. Mesmo com as pequenas grandes diferenças a separar a nossa forma de vida da dos outros, temos gostado muito de visitar Eiró. Até muito recentemente, estávamos tão embrenhados no trabalho diário, que nem tínhamos tido grande tempo para lá irmos antes que anoitecesse. Agora, que os dias já ganharam um tamanho decente, sempre nos sobram uma ou duas horas para atravessarmos o rio mais belo que já se viu e convivermos um pouco com as pessoas que já cá viveram vidas inteiras. Cada um vai-nos contando a sua própria estória e, aos poucos, há toda uma figura que se monta daquilo que terá sido um passado áureo aqui da Quinta do Carvalhal. Muitos dizem-nos que “aquilo é que era um quinta!”; que produzia um montão de azeite e que as pipas de vinho não paravam de rolar caminho a baixo; dizem-nos que a fruta nunca faltava; que as laranjas eram as melhores, e que havia maçãs de cá da zona que a todos faziam salivar em anticipação. Hoje, após trinta anos de "abandono", esta terra chama-se Landra e, pelas nossas mãos, vai dando passos numa direção que muitos revêem como aquilo que esta terra já foi: um verdadeiro jardim, cheio de vida e de comida.
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ler sobre: As durezas do inverno
Dizem-nos que este ano é que foi; que foi o pior, o mais frio, o mais austero. Nunca mais passavam as chuvas e havia dias em que se vivia de noite. Quando a luz nos tocava as peles, a névoa, permanente, lembráva-nos de que nada era seco. Não que tudo isto seja mentira, ou que seja, de todo, irrelevante constatarem-se alguns dos mais opressivos factos da vida nortenha, mas este passar por Janeiro tem-nos pesado mais do lado social das coisas, do que do lado em que nos confrontamos com as expressões invernais desta recalcante altura do ano. Lavar o corpo com a água do rio - postos três graus negativos - tem-nos sabido inigualavelmente bem. Ir dormir bem antes de se terem apercebido as cidades de que o sol já la se foi, frescos e reverberantes das partes todas do corpo, é trabalho só do inverno. Esta pulsação, insistente, do sangue quente, a ferver-nos o ar em roda um do outro é, estranhamente, um bem inexplicável da vida escura das seis e meia da tarde (que é noite). Acabado um dia de trabalho físico, corporalmente árduo e extenuante, a mística das névoas pálidas, deslizando vale abaixo, oferece a todas as coisas uma alma maior, um qualquer mistério, sempre vivo, assustadoramente arregalado, ainda que convidativo. A Helena - mãe do Rodrigo - quando a temperatura desce da marca certíssima dos dezasseis graus, grita sem falta: “ai que me vão rachar os ossos!!!”. Isto é na Ilha da Madeira, que fica na Placa Africana. Por isso, pensou que tínhamos morrido congelados, por não lhe termos retribuído uma chamada perdida, num destes dias, em que tentávamos poupar cada pinga da bateria dos nossos telemóveis, a ver se conseguíamos enxergar as coisas que comíamos no escuro do granito serrado. Estamos a ficar numa tenda, pequenina, dentro de uma casa de pedra, a medir cinco de cada lado, e que já serviu de abrigo para as vacas que pastavam cá no Carvalhal. Agora, é a nossa casa e, ainda que provisoriamente, nos poucos tempos que passaram, aprendemos a gostar muito dela. Embora esteja pessimamente construída, e corra um ar gelado por entre as duas portas (às quais lhes faltam metade das tábuas), esta é a nossa casa. É onde dormimos, onde cozinhamos, onde nos vestimos e despimos todos os dias, e onde o Rodrigo anda descalço, ainda que se vejam mais aranhas que palha. Por baixo da tenda, a palha é o que nos separa os ossos das rochas. O chão é a rocha viva da montanha, que foi picada - mas não demasiado - para aparentar ter a forma plana de um chão. Plano o suficiente, ter-nos-á este chão, até nos mudarmos para a casa maior, aqui ao lado, e que começaremos por recuperar - primeiro o telhado, depois o soalho - aos poucos, aos pouquinhos… Este Janeiro tem-nos pesado de forma diferente. As pessoas dizem-nos que este ano está a ser um pesadelo; porque chove, porque está frio; "o chão gelou!" e "o bicho anda aí!". Cá por nós, vêmo-nos embrenhados numa torrente agridoce de situações particularmente desagradáveis, que têm especialmente que ver com o mundo dos humanos e as suas complexidades. Primeiro, roubaram-nos uns trinta quilos de azeitonas. Após a apanha, tínhamo-las deixado de molho no rio, com fé em voltar a vê-las - desamargadas - prontas para entrar na salmoura especial que o Rodrigo faz com uma receita coreana. Azeitonas à vista? cá nada! A azenha e as rochas, todo aquele musgo, nem uma palavra. A Dona Leonor lá nos explicou algumas das regras locais que regem o acesso ao rio (e a todas as coisas que lá se encontram). Vai-se a ver, e tudo o que está nas orlas do rio é de todos - simples, e sem exceções - o que inclúi sacos de azeitonas de molho, claramente deixadas por alguém que as apanhara... Ficámos a saber que, um pouco mais acima, no nosso terreno, passa um "corgo" - um pequeno curso de água, com alguma força, vá... - que ninguém visita, a não ser a própria Dona Leonor, e um rapaz de Eiró, que anda sempre por aí à procura de ouro, com o seu detetor de metais. De vez em quando, quando encontra uns centavos, oferece-os prontamente às pessoas. Há que dizer que nem todas as azeitonas se perderam! Calma... estas foram as que nos fizeram deixar de as voltar a pôr de molho no rio. Antes destas, a nossa confiança era só toda e plena, pois era o que tinhamos andado a fazer, com sucesso, desde o início das apanhas. Muitas estão já que se provam, ainda gasosas, mas bem deliciosas, a sair dos potes de vidro que nem bombons! Ai ai que estranhas maravilhas, as azeitonas... Oliveiras e seus frutos de parte, os cavalos da Leonor não nos têm dado grande descanso... Antes de termos vindo para cá, estes quatro garranos arraçados foram deixados a ambientarem-se - diga-se de passagem - àquele que é o terreno mais fixe de Riodouro. Claro está, por ser um deslumbre cá na zona, os cavalos - bem sabidos das coisas da vida - decidiram que esta seria a sua nova casa. Têm água, têm comida, até casa têm. Casa mesmo, sim... Os cavalos encontraram uma forma de entrar na casa (que os humanos tinham construido e, há mais de trinta anos, abandonado) e viviam lá dentro. Cagaram o chão todo, e deixaram tudo num estado... natural... Uma certa parte de nós delicia-se com estes quatro belos seres a correrem livres por aí. Uma certa outra parte faz contas à vida, ao ver massacradas, por vezes até mortas (por simples e curiosas dentadas), as árvores que temos vindo a plantar. [Em várias culturas orientais, nomeadamente a chinesa e a japonesa, o número quatro é símbolo de azar, de má fortuna profunda. "Yon" ou "Shi", quer inclusivamente até dizer morte...] Indisciplinados, corajosos, ou masoquistas, os cavalos não se acanham à vista do famoso fio laranja - tipicamente eletrificado - que supostamente deve meter o devido respeito em toda essa bicharada. Passados dias a ponderar sobre começar (ou não) a fechar o terreno, decidimos que, para já, teríamos mesmo de tomar algumas medidas, mas não daquelas drásticas, apenas das suaves, daquelas flexíveis e graduais... Começámos por desenhar e instalar setenta e cinco metros de vedação de aço na zona norte do terreno, que dá para o caminho velho de Eiró. Depois, encetámos um plano de escorraçamento dos bichos, coitados. Após duas tentativas falhadas, em que aquelas patas galopantes nos fintavam que era uma alegria, a correr que nem o senhor cabeludo do Brave Heart, lá conseguimos enxutar os cavalos para fora dos nossos confins. Com isso, fechou-se, num abrir e fechar de olhos, o último pedacinho de vedação e pronto! Era uma vez os cavalitos. Aquela semana de lama e arames, os cortes nas mãos e a pele talhada, o trabalho à chuva e aquelas húmidas capas (supostamente impermeáveis)... tudo nos serviu, enfim, encerrados. A verdade é que não passou uma semana, e a vedação tinha sido cortada numa certa parte, de cima a baixo, durante a noite, por caçadores. Não só entraram os caçadores, a ver se interpolavam a hora de jantar dos escarafunchantes javalís, como voltaram a entrar para o lado de dentro o raio dos cavalos. Estava o terreno a ser ocupado, de novo, por tudo e por todos, de todas as maneiras, como se de um campo multi-usos se tratasse... Entretanto, evitámos entrar em guerra e já conversámos com os vizinhos sobre estas situações; aprendemos algumas manhas locais e começámos a trabalhar de uma forma um pouco mais engenhosa. É que essa é a realidade. O Carvalhal é, de facto, um campo multi-usos. Sempre foi, sempre será, e é assim que deve ser. Tudo o que é preciso, é um pouco de regra; um nadinha de articulação, e muita diplomacia entre os humanos... Vieram os sinais de não caça; vieram mais uns metros de vedações, que utilizamos para proteger pequenas hortas aqui e ali; combinámos com a Leonor termos os cavalos nuns terrenos mais acima, longe da perdição que é, para eles, enfiarem-se os quatro no Carvalhal; e já não deixamos nada de molho no rio de baixo. Assim se vai aprendendo as manhas do sítio e, acima de tudo, assim vamos dando sinais claros e cordiais da nossa presença a todos os que já frequentavam este lugar antes de nós. Entretanto, o sol cá vai voltando, aos poucos, e aparecem dezenas de plantas comestíveis - comida gratuita, portanto - por todos os cantos! A primavera vem aí... ler sobre: Há tanto campo em mim
Landra não é só um carvalhal e, quando chegámos, fazia-se já acompanhar de outras árvores que davam ao terreno um ar vibrante. Do outro lado do vale, viam-se apenas prados verdes rasteiros, já quase totalmente despidos, passeando carneiros diariamente. Mas o carvalhal era conhecido como um lugar cheio de copas, e até aprendemos com o senhor Domingos que outrora ali viviam grandes árvores de fruto. A mudança de caseiros deu lugar a limpezas que apresentavam agora a forma de troncos rasantes pelos quais passávamos diariamente nos nossos percursos laborais. Ainda assim, os castanheiros eram consideráveis, e o carvalhal parecia agora mais um olival. Havia várias oliveiras mas nem tantos sinais de azeitonas. Alguns culpavam o tempo, enquanto outros diziam-nos que faltava a poda. A verdade é que não queríamos cortar nada que não fosse estreitamente necessário, mas ao lermos sobre o assunto percebemos que a partir do momento em que as oliveiras são podadas pela primeira vez, o sistema fica de alguma maneira viciado. Já com alguma idade, as oliveiras estavam quase todas, como se diz, a ‘refilar’. Os pequenos ramos que brotavam debaixo do tronco pareciam estar a tomar partido da maior parte da energia, deixando o resto da árvore sem frutificar. Mas ainda se viam sinais de azeitonas em duas ou três, que decidimos tornar na nossa colheita deste ano. Duas ou três, não daria muito a desejar. Mesmo com poucas ferramentas (sem vara nem nada) achámos, pelo menos, que um pano de serapilheira nos ia facilitar a vida, e pusemos então mãos à obra. Uma tarde se passava, com um grande sol de Novembro que mais fazia lembrar Agosto. O Rodrigo em cima duma escada que parecia suspensa no ar, mexia nos ramos para que as azeitonas deles se libertassem e a Sara, cá em baixo, os pudesse apanhar. Azeitona atrás de azeitona, nem meia árvore estava despida e o sol já se punha. Ainda passámos mais alguns serões na apanha antes de as pormos no riacho a demolhar. Pequeninas mas de pele reluzente e tom esverdeado, faziam-nos crer que a nossa singela colheita ia ser bastante proveitosa. De tempo a tempo, a terra ia-se cobrindo de mais azeitonas em cada patamar, mas já não tínhamos mãos a medir, tínhamos mesmo muito para onde nos virar. De repente já não eram só azeitonas que encontrávamos no caminho mas uma panóplia de cogumelos que nunca mais acabava. Nunca tínhamos visto tantos cogumelos diferentes num só lugar. Escuros com manchas claras e claros com manchas escuras, voluptuosos e esguios, peludos e viscosos, parecia uma verdadeiro show de variedades. O problema é que não os sabíamos identificar. Disseram-nos que nos dias que não tínhamos estado no terreno, um senhor tinha andado por lá para os apanhar, mas infelizmente não o encontrámos para que nos pudesse dar uma ajuda. Dizem sempre que até quem sabe não arrisca, mas acreditamos que um dia iríamos conseguir sacar uns grandes petiscos e cozinhados. Parecia-nos ridículo que com tantos cogumelos espalhados, os andássemos a trazer no saco dos comprados. A notícia das maravilhas do campo já se tinha espalhado, e os nossos amigos artistas do Porto, com um quê de vontade de mudar de ares, vieram finalmente visitar-nos para confirmar se a letra ‘há tanto campo em mim’ da Lena D’Água se confirmava. Trouxemo-los pelo caminho da igreja, onde antigamente passavam os aldeões também em dias de funerais, mas aquele belo caminho estava realmente era cheio de vida em cada passo que se dava. A Teresa identificava mais plantas comestíveis enquanto recolhia bocadinhos de musgo, e o Zé falava-nos dos xaropes e cervejas que dariam para preparar. Havia um grande entusiasmo e, apesar de todos concordavam que isto iria dar tudo muito trabalho, confirmaram-nos que estariam sempre prontos a ajudar, pois queriam mesmo lá voltar. ler sobre: Como se pariu um carvalhal
Esteve-se em Londres tempo que baste. Bastou, enfim, e cá viemos bater a Cabeceiras de Basto. Nem sabíamos da terra, nem do seu nome. Um salto no escuro, portanto. Como dar aquela queca que, a bem ou a mal, lá nos conduz a andar, nove meses adiante, com um certo macaquinho às costas. É desde Julho do mítico ano de 2020 [imagine-se a tatuagem na anca de uma qualquer senhora avantajada: “CORONA MMXX”] que estamos cá, no Carvalhal. É isso mesmo! O nosso terreno tem nome e, como muitos outros carvalhais por este mundo fora, o nosso também tem outras coisas para além de carvalhos a dar com um pau. Quando chegámos, tudo era mágico. Só faltavam os faunos do jardim e as bruxas do pomar. Atenção, que ainda tudo tem o seu charme; o seu toque onírico, neste ou naquele momento, quando a luz passa assim ou assado pela neblina matinal, ou quando nos cumprimentam os arbustos do costume com as suas novas flores. No entanto, já não ficamos completamente obfuscados com toda e mais alguma coisa; extasiados, incapazes de fazer, com lógica, duas coisas conseguintes. Quando chegámos, deambulava-se todo o dia, curiosamente acampando nos sítios mais estranhos. Nem vinte mil mapas de cotas nem imagens do Google Earth alguma vez nos valeriam estes pequenos rodopios - docemente cortantes - pelas giestas, tojos, e codessos, que se haviam bem instalado no passar de trinta anos des-humanizantes. Foi como esperar que um pequeno nasça. Há todo o atafulho tecnológico, que nos faz mirar processo adentro - são as ecografias, os testes hormonais, as apalpações e tudo e tudo - mas nada substitui, como é óbvio, o ato esgazeado de vermos um bicho daqueles nascer e a comportar-se que nem um extra terrestre, digno de pedestal num qualquer museu em Novo México. Tínhamos mapas de floração, mapas de elevação, mapas de água, mapas bioclimáticos, índices ombrotérmicos, mapas geológicos, estudos da fauna e da flora da região… Encenámos a nossa aterragem, coreograficamente, como se faz em teatro barroco. Chegar ao Carvalhal, porém, foi uma outra arte; encontrar a casa de pedra - escondida no meio do mato - outra tanta missão. Essa é a realidade das coisas. Nada nos prepara para o momento, aquele que é sempre presente, em que tudo é, tudo acontece, e é sempre tão melhor. Mas ainda nos são valentes os mapas! Vamos lá ver. Com eles, pode viver-se, com uma profundidade acrescida, aquilo que vai acontecendo mais do que aquilo que é ou aquilo que está. Ainda que com o aparelhinho intuitivo sempre ligado, sabemos melhor quando esperar ou quando (e como) agir. Esperamos pelas borboletas amarelas de fevereiro; pelos os morcegos, pelas infinitas aranhas e pelas primeiras lagartixas e osgas primaveris; ou sabemos quando deixar que uma certa brisa orográfica desça sorrateiramente pela montanha, e que, a uma dada hora, numa certa altura quente ano, regue, condensando-se como se nada fosse, as mais rasteiras das plantas… No entanto, nem para fotografar a gente pára, quando (não tão raras) são as vezes em que o momento - aquele presente - é digno de pintura. |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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October 2024
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