diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Mãos Corajosas à Obra
A casa já nos pedia por favor que nos apressássemos com as obras. Precisava de ser coberta, não fosse o interior degradar-se ainda mais. Foi isso que fizemos. Mal houve uma semana de jeito. Arregaçámos as mangas e pusemos mãos à obra. Com os andaimes que tínhamos já arranjado na loja do senhor Parente, em Cabeceiras, andámos todos empoleirados nas alturas a arranjar estruturas de madeira e topos de paredes para que aterrasse em estilo o novo telhado. Até este momento, dando-se conta da localização particularmente bizarra da nossa casa - isolada no meio de uma floresta, num vale, apartada da estrada nacional novecentos metros de caminho incerto que baste - todos a quem pedimos ajuda com as obras de recuperação acabariam eventualmente por abandonar o barco, uns mais sorrateiramente que os outros… Os últimos com quem tínhamos falado, tinham sido os Carvalho - pai e filho - muito conhecidos em Cabeceiras como bons carpinteiros, procurados especialmente pelo suposto brio e bom gosto com que fazem móveis e acabamentos fininhos… Nós não queríamos grandes acabamentos, se não as bases, mais básicas em bem feitas que pode haver; fortes e duradoiras, tudo no sítio com os melhores materiais. Acabamentos fazemos nós! O Carvalho filho, ao descer o caminho a pé para ver a casa, foi-se acanhando na comunicação, cada vez mais esguia, escassa até se perder de vista. Após esperas e hesitações já desgostosas, foi o próprio Carvalho pai que nos indicou o Senhor Machado, mais conhecido pelos sítios de Pedraça como “O Batatinha”. Para todos efeitos, foi o Senhor Machado, o único corajoso, aventureiro e um tanto quanto louco que se dignou a cumprir a promessa. Chamou o irmão, que é tanoeiro, e um amigo com quem costumam trabalhar, e desceu de trator carregado, em várias partes, com as mil e tal telhas e uns tantos barrotes pelo nosso caminho abaixo. Alguns barros, como seria de esperar, partiram-se, mas isso faz parte da aventura! Até o trator ficou alagado num buraco ao tentar sair daqui num dia mais húmido, e tivemos de trazer ainda alguns barrotes aos ombros para lembrar os velhos tempos em que as pessoas de Eiró, quando morria alguém, iam a pé, de caixão às costas, para a Igreja de Riodouro (que fica do nosso lado), tudo para merecerem um pouco de bacalhau seco quando lá chegassem à cerimónia, que era sempre meia triste, meia alegre. Com medo de que viessem por aí as chuvas a sério, o trabalho fez-se rápido e certo até tudo ficar pronto. Quando chegou à vez de tratarmos as madeiras que ficariam mais expostas aos elementos, tivemos o prazer de demonstrar aos profissionais que também sabíamos uns truques fixes. Recentemente, tínhamos passado em Foz-Côa, de onde trouxéramos umas quantas galhas de terebinto selvagem. É uma planta do mesmo género do pistácio (que se come) mas que produz carradas de resina volátil, e que se destila para produzir a turpentina. Misturada com cera de abelhas e óleo de linhaça em partes iguais, faz um belo produto para tratar madeiras que se queiram protegidas da chuva, dos fungos e dos insectos! Os Machado até são os carpinteiros mais tradicionais que já encontrámos por estas bandas, mesmo assim, se não lhes tivéssemos imposto este mais lento e moroso tratamento à moda antiga, as madeiras exteriores teriam sido todas pinceladas com bondex… Sentados nos andaimes, acabávamos nós as madeiras enquanto o Senhor Machado ia fixando as telhas, não fossem levantar voo com os ventos mais fortes do inverno… Fora estas pequenas dissidências, o Senhor Machado gosta do nosso pão de bolota, gosta do ambiente assim, selvagem, e gosta de nós. Quando veio cá pela primeira vez, mostrámos-lhe onde dormíamos, como fazíamos comida, as nossas novidades na horta, e deixámo-lo emocionado com a nossa forma de vida. Disse-nos logo que lhe fazia lembrar da sopa que a avó dele fazia; nos tempos em que era verdadeiramente feliz, sem luz, nem água encanada. Para lhe passar a melancolia, de saber que o seu próprio filho já não lhe seguia os passos, demos-lhe uma folha de mostarda roxa para as mãos. Meteu-a à boca e disse “Foda-se ca puta! É picante c’mó caralho!!!”. De seguida, olhou para os inhames que temos a crescer mesmo aqui em baixo da casa, na primeira horta que abríramos. Mirando as suas copas gigantes, perguntou-nos se eram jarros. Dissemos-lhe que eram da mesma família, mas que estes, tinham vindo da Madeira e se lhes comíamos as raízes, tiradas em Abril. Quando se começarem a propagar decentemente, vamos tratar de fazer chegar inhame a toda a gente da zona! Vai ser um sucesso!
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ler sobre: Construção e Ensaios
A casa já nos pedia por favor que nos apressássemos com as obras. Precisava de ser coberta, não fosse o interior degradar-se ainda mais. Foi isso que fizemos. Mal houve uma semana de jeito. Arregaçámos as mangas e pusemos mãos à obra. Com os andaimes que tínhamos já arranjado na loja do senhor Parente, em Cabeceiras, andámos todos empoleirados nas alturas a arranjar estruturas de madeira e topos de paredes para que aterrasse em estilo o novo telhado. Até este momento, dando-se conta da localização particularmente bizarra da nossa casa - isolada no meio de uma floresta, num vale, apartada da estrada nacional novecentos metros de caminho incerto que baste - todos a quem pedimos ajuda com as obras de recuperação acabariam eventualmente por abandonar o barco, uns mais sorrateiramente que os outros… Os últimos com quem tínhamos falado, tinham sido os Carvalho - pai e filho - muito conhecidos em Cabeceiras como bons carpinteiros, procurados especialmente pelo suposto brio e bom gosto com que fazem móveis e acabamentos fininhos… Nós não queríamos grandes acabamentos, se não as bases, mais básicas em bem feitas que pode haver; fortes e duradoiras, tudo no sítio com os melhores materiais. Acabamentos fazemos nós! O Carvalho filho, ao descer o caminho a pé para ver a casa, foi-se acanhando na comunicação, cada vez mais esguia, escassa até se perder de vista. Após esperas e hesitações já desgostosas, foi o próprio Carvalho pai que nos indicou o Senhor Machado, mais conhecido pelos sítios de Pedraça como “O Batatinha”. Para todos efeitos, foi o Senhor Machado, o único corajoso, aventureiro e um tanto quanto louco que se dignou a cumprir a promessa. Chamou o irmão, que é tanoeiro, e um amigo com quem costumam trabalhar, e desceu de trator carregado, em várias partes, com as mil e tal telhas e uns tantos barrotes pelo nosso caminho abaixo. Alguns barros, como seria de esperar, partiram-se, mas isso faz parte da aventura! Até o trator ficou alagado num buraco ao tentar sair daqui num dia mais húmido, e tivemos de trazer ainda alguns barrotes aos ombros para lembrar os velhos tempos em que as pessoas de Eiró, quando morria alguém, iam a pé, de caixão às costas, para a Igreja de Riodouro (que fica do nosso lado), tudo para merecerem um pouco de bacalhau seco quando lá chegassem à cerimónia, que era sempre meia triste, meia alegre. Com medo de que viessem por aí as chuvas a sério, o trabalho fez-se rápido e certo até tudo ficar pronto. Quando chegou à vez de tratarmos as madeiras que ficariam mais expostas aos elementos, tivemos o prazer de demonstrar aos profissionais que também sabíamos uns truques fixes. Recentemente, tínhamos passado em Foz-Côa, de onde trouxéramos umas quantas galhas de terebinto selvagem. É uma planta do mesmo género do pistácio (que se come) mas que produz carradas de resina volátil, e que se destila para produzir a turpentina. Misturada com cera de abelhas e óleo de linhaça em partes iguais, faz um belo produto para tratar madeiras que se queiram protegidas da chuva, dos fungos e dos insectos! Os Machado até são os carpinteiros mais tradicionais que já encontrámos por estas bandas, mesmo assim, se não lhes tivéssemos imposto este mais lento e moroso tratamento à moda antiga, as madeiras exteriores teriam sido todas pinceladas com bondex… Sentados nos andaimes, acabávamos nós as madeiras enquanto o Senhor Machado ia fixando as telhas, não fossem levantar voo com os ventos mais fortes do inverno… Fora estas pequenas dissidências, o Senhor Machado gosta do nosso pão de bolota, gosta do ambiente assim, selvagem, e gosta de nós. Quando veio cá pela primeira vez, mostrámos-lhe onde dormíamos, como fazíamos comida, as nossas novidades na horta, e deixámo-lo emocionado com a nossa forma de vida. Disse-nos logo que lhe fazia lembrar da sopa que a avó dele fazia; nos tempos em que era verdadeiramente feliz, sem luz, nem água encanada. Para lhe passar a melancolia, de saber que o seu próprio filho já não lhe seguia os passos, demos-lhe uma folha de mostarda roxa para as mãos. Meteu-a à boca e disse “Foda-se ca puta! É picante c’mó caralho!!!”. De seguida, olhou para os inhames que temos a crescer mesmo aqui em baixo da casa, na primeira horta que abríramos. Mirando as suas copas gigantes, perguntou-nos se eram jarros. Dissemos-lhe que eram da mesma família, mas que estes, tinham vindo da Madeira e se lhes comíamos as raízes, tiradas em Abril. Quando se começarem a propagar decentemente, vamos tratar de fazer chegar inhame a toda a gente da zona! Vai ser um sucesso! ler sobre: Formas de vida
Abril é expansão. Os dias alargam-se, sendo o maior que podem, e lá se deita o sol, esticando-se, todos os fins de tarde, a ver se arranha as escarpas, cada vez mais a norte, lá para as Serras da Cabreira. Abril águas mil. Assim o dizem também, não é? Não podemos dizer que as águas tenham sido assim tantas, para que se justifique à risca o ditado, mas foram as que bastaram, equilibradamente regando os campos de manhã e de noite, e enchendo-nos os bidões com água da melhor que há: de PH neutro; com uma infinitude de leveduras selvagens; algumas algas e bactérias fotossintéticas (que vieram dos telhados musgosos); e muita vontade de conhecer a terra. A composição topográfica deste país - com as serras que, bem altas, o cortam ao meio - oferece-nos uma grande abundância de água. Uma água que, por cair aqui, não cai noutros sítios, infelizmente. Uma abundância que, por vezes, é de gestão matreira. É que esta terra brota água por todos os lados e, ainda que bem drenada, a quantidade é tanta, que as comunidades de plantas organizam-se em torno de uma extensa rede de pequenas máfias aquáticas, em que dominam as nossas favoritas - as angélicas - por entre as várias mentas, os vigorosos junquinhos e uma data de lamiáceas. Mesmo com tanta água para encaminhar, temos estado cada vez mais atentos aos milagres da precipitação. Quando o ar se sente húmido, quando as nuvens pesam, quando nos chega à pele a mais pequenina das gotas ou, vá lá, quando de rompante, começa mesmo a chover a potes, desatamos logo a correr para a recolha! Fazemos isto pois aqui, no noroeste ibérico, extensamente coberto por umbrisolos ácidos, a água terrestre acaba, ela mesma, por ser também ácida. Já a água da chuva - mais neutra e menos mineralizada - ajuda sempre a manter tudo no lugar. A longo prazo, os solos livram-se de sofrer com problemáticas concentrações salinas, e sempre deixam de ter azia. A chuva é um bem que cai do céu. Desperdiçá-la é das maiores parvoíces de sempre… Por acaso, ou não, quando viemos para cá de bicicleta - há umas semanas atrás - deu um dia perfeito; claro, cristalino, sem uma pinga que fosse, nem uma nuvem à vista. É isso mesmo! Decidimos trazer as bicicletas para cá para a Landra. Assim, facilitam-se as idas à vila, que fica ainda a uma meia hora daqui. Sempre que contamos esta estória a alguém, saem disparados os comentários: “ai que loucura!”; ou o típico “vocês são passados da cabeça”; ou ainda o mais insólito (ainda assim ocorrente) “mas isso é impossível!”. Bem, comparado com uma viagem que o Rodrigo fez, uma vez, de Londres a Colónia (na Alemanha), e da Colónia, de volta, mas para o Porto, esta - do Porto a Cabeceiras - não foi nada; foi como água. Essa viagem pela Europa foi cumprida, em tom de epopeia, sem bomba de ar, sem remendos, sem ferramentas, nem câmara de ar suplente, nem GPS, nem mapas, nem roupa suficiente, nem nada. Nem um problema [a não ser uma sede danada que, em pleno agosto, quase o matou no nordeste francês entre campos secos e maltratados, e uma sucessão de pequenas vilas abandonadas]. Desta vez, bem precavidos e com receio do que pudesse vir a acontecer pelo caminho, viemos carregados com um arsenal de equipamentos, e pronto, lá tivemos um furo a meio do caminho para dar uso às ferramentas! Estávamos mesmo a pedir… Também viemos sem mapas nem GPS. Viemos a seguir o sol, ou melhor, a seguir a nossa própria sombra. Saímos do Porto ao meio-dia, o que quer dizer que o sol estava a sul; as sombras a norte, portanto. Ao ir-se pondo o sol, as nossas próprias silhuetas - bem desenhadas no chão, por se fazer um dia incrível - guiavam-nos sempre, muito certas, em direção a Cabeceiras. Mas esta viagem não foi assim tão suave! Calma… Para além do furo (que o Rodrigo reparou num abrir e fechar de olhos, ao estilo fórmula um), chegados a Guimarães, a Sara achava que já não tinha joelhos, mas ainda nos faltava mais de metade do caminho. A chegar a Fafe, entrámos sem querer numa via rápida [não digam nada à polícia!] e, ao demorarmos mais do que tínhamos planeado, o sol escondia-se por detrás das serras. A verdade é que já havia pouca luz na estrada, e não nos servia a lua, pois estávamos na sua fase errada… A páginas tantas, estávamos em montanhas que nunca mais paravam de subir e que já nem de bicicleta se faziam. Estávamos agora a pé, sem sol, e com algum medo (não infundado), de sermos abordados por uma matilha de lobos. O cansaço e a altitude, crescentes, combinavam-se na forma de incrementais calafrios, desmoralizantes. Nas grandes alturas, em que ofegar é a única forma de respirar, e as nuvens, abaixo dos nossos pés, nos faziam acreditar que aquela subida nunca mais teria fim, entrávamos, inesperadamente, pela malha urbana adentro, que as Terras de Basto exibiam, mesmo ainda nos montes, a escorrer, caminho a baixo, via Cabeceiras. Os travões da bicicleta do Rodrigo, que foram comprados numa loja de ciclismo com mais de cem anos na Maia, são vintage e, talvez por isso, guincham que é uma maravilha… A descida foi pontuada com longas notas intermitentes, bem enervantes, de borracha rija e alumínio barato. No fim de nove pedalantes horas, dormimos que nem pedras, na nossa grutinha de pedra; e foi a última vez. Há uns dias, a Catarina - amiga da Sara - veio-nos visitar com os pais. Vieram ver o terreno, que não fica nada longe de uma casa que têm em Chacim, a cinco minutos de bicicleta daqui. Já tinham ouvido falar de que andamos a trabalhar muito, e de que estava tudo a ficar bem bonito, e queriam averiguar a situação. Ao chegarem cá em baixo, começaram-se logo a despir. A temperatura é, de facto, bem diferente daquela que lhes gelava os couros durante o inverno, aos setecentos metros de altitude. Aqui, aos trezentos, e num vale bem mais arborizado do que as serras lá para cima, as coisas são mais meigas e gentis. Uma geada que se preze, fica o dia todo a queimar as verduras e a fazer cair as flores dos antecipados Prunus, coitados. Aqui, um friozinho que se veja azulado durante as primeiras horas da manhã, não dura mais que isso: algumas horas (e só de manhã) nalguns dias do ano apenas, e vai-se sempre antes que o sol beije as faces de todas as coisas verdes. Portanto, estamos numa liga mais leve, no que toca a enfrentar a firmeza do famoso “inverno nortenho”. Isto para dizer o quê? Que os pais da Catarina - um engenheiro e uma arquiteta - ao verem a casa; ao entrarem nela, e ao efetivamente começarem a pular sobre o soalho (para provar que estava de não se morrer nele), perguntaram-nos, surpreendidos, se tínhamos mesmo a certeza de que queríamos a continuar a viver numa furna… Eles achavam que o velho soalho da casa principal, embora mais usado que um hábito papal quinhentista, estava em muito bom estado e serviria, não só para suster o peso dos quatro cavalos que cá viveram, mas o nosso próprio e o das nossas muito minguadas tralhas. E foi assim que mudámos para a nova (velha, e verdadeira) casa. Em dois dias, abandonámos o palheiro, que tinha albergado umas quantas vacas. Passávamos, então, a ser como pessoas, no Carvalhal. Agora, com duas janelas para o mundo [o nosso habitáculo anterior não tinha abertura alguma], acordamos todos os dias com os avanços milagrosos da primavera. As giestas estão em flor, com aquele manto amarelo, embriagante, de cheiro doce tão sedutor; tudo cresce, espiga, refila, desponta e abunda; apenas os castanheiros, mais estivais, aguentam os seus botões, firmes, seguros, até que cheguem os dias mais quentes. No barraco em que dormimos até agora, as portas nem fechavam e faltavam-lhes grandes pedaços de madeira que, de podre, já se tinha convertido em solo a favor das silvas e dos fetos. Agora, para além de janelas, também temos portas (ainda que apenas uma tranque por dentro e faltem alguns vidros às janelas). Estas são as condições em que vivemos. Quando as descrevemos aos nossos conterrâneos, aqui em frente, na aldeia de Eiró, metade acha que somos os maiores, metade acha que somos um bocadinho parvos. A senhora Geralda - a tasqueira de cá da zona - diz-nos que não temos necessidade de comer as coisas que comemos; que em vez de comermos “ervas do chão”, deveríamos plantar couves e batatas. De facto, temos algumas couves galegas, que são tão deliciosas, e as batatas, daqui a nada, estão de se papar num bom caldo verde, mas é que nós gostamos mesmo das nossas magníficas “ervas daninhas”: temos sarralhas bem tenrinhas, e alguns dentes de leão aqui e alí, temos urtigas e lâmios (comicamente conhecidos por “chupa pitos”); as primaveras já nos alimentam desde janeiro; há labaças e angélcias mesmo à frente de casa; todos os muros ostentam os seus umbigos de vénus; as ajugas aparecem pelos prados lá em baixo fazendo frente às variedades de menta que persistiram o inverno todo, já se cheiram os orégãos frescos de longe e há azedas espalhadas por aí… O que não nos falta é comida por todo o lado. Sabemos que estas espécies são incrivelmente nutritivas e que nos fazem muitíssimo bem! As outras pessoas já quase nem as reconhecem, pois há muito que as expulsaram dos seus terrenos, infelizmente. Mesmo com as pequenas grandes diferenças a separar a nossa forma de vida da dos outros, temos gostado muito de visitar Eiró. Até muito recentemente, estávamos tão embrenhados no trabalho diário, que nem tínhamos tido grande tempo para lá irmos antes que anoitecesse. Agora, que os dias já ganharam um tamanho decente, sempre nos sobram uma ou duas horas para atravessarmos o rio mais belo que já se viu e convivermos um pouco com as pessoas que já cá viveram vidas inteiras. Cada um vai-nos contando a sua própria estória e, aos poucos, há toda uma figura que se monta daquilo que terá sido um passado áureo aqui da Quinta do Carvalhal. Muitos dizem-nos que “aquilo é que era um quinta!”; que produzia um montão de azeite e que as pipas de vinho não paravam de rolar caminho a baixo; dizem-nos que a fruta nunca faltava; que as laranjas eram as melhores, e que havia maçãs de cá da zona que a todos faziam salivar em anticipação. Hoje, após trinta anos de "abandono", esta terra chama-se Landra e, pelas nossas mãos, vai dando passos numa direção que muitos revêem como aquilo que esta terra já foi: um verdadeiro jardim, cheio de vida e de comida. ler sobre: As durezas do inverno
Dizem-nos que este ano é que foi; que foi o pior, o mais frio, o mais austero. Nunca mais passavam as chuvas e havia dias em que se vivia de noite. Quando a luz nos tocava as peles, a névoa, permanente, lembráva-nos de que nada era seco. Não que tudo isto seja mentira, ou que seja, de todo, irrelevante constatarem-se alguns dos mais opressivos factos da vida nortenha, mas este passar por Janeiro tem-nos pesado mais do lado social das coisas, do que do lado em que nos confrontamos com as expressões invernais desta recalcante altura do ano. Lavar o corpo com a água do rio - postos três graus negativos - tem-nos sabido inigualavelmente bem. Ir dormir bem antes de se terem apercebido as cidades de que o sol já la se foi, frescos e reverberantes das partes todas do corpo, é trabalho só do inverno. Esta pulsação, insistente, do sangue quente, a ferver-nos o ar em roda um do outro é, estranhamente, um bem inexplicável da vida escura das seis e meia da tarde (que é noite). Acabado um dia de trabalho físico, corporalmente árduo e extenuante, a mística das névoas pálidas, deslizando vale abaixo, oferece a todas as coisas uma alma maior, um qualquer mistério, sempre vivo, assustadoramente arregalado, ainda que convidativo. A Helena - mãe do Rodrigo - quando a temperatura desce da marca certíssima dos dezasseis graus, grita sem falta: “ai que me vão rachar os ossos!!!”. Isto é na Ilha da Madeira, que fica na Placa Africana. Por isso, pensou que tínhamos morrido congelados, por não lhe termos retribuído uma chamada perdida, num destes dias, em que tentávamos poupar cada pinga da bateria dos nossos telemóveis, a ver se conseguíamos enxergar as coisas que comíamos no escuro do granito serrado. Estamos a ficar numa tenda, pequenina, dentro de uma casa de pedra, a medir cinco de cada lado, e que já serviu de abrigo para as vacas que pastavam cá no Carvalhal. Agora, é a nossa casa e, ainda que provisoriamente, nos poucos tempos que passaram, aprendemos a gostar muito dela. Embora esteja pessimamente construída, e corra um ar gelado por entre as duas portas (às quais lhes faltam metade das tábuas), esta é a nossa casa. É onde dormimos, onde cozinhamos, onde nos vestimos e despimos todos os dias, e onde o Rodrigo anda descalço, ainda que se vejam mais aranhas que palha. Por baixo da tenda, a palha é o que nos separa os ossos das rochas. O chão é a rocha viva da montanha, que foi picada - mas não demasiado - para aparentar ter a forma plana de um chão. Plano o suficiente, ter-nos-á este chão, até nos mudarmos para a casa maior, aqui ao lado, e que começaremos por recuperar - primeiro o telhado, depois o soalho - aos poucos, aos pouquinhos… Este Janeiro tem-nos pesado de forma diferente. As pessoas dizem-nos que este ano está a ser um pesadelo; porque chove, porque está frio; "o chão gelou!" e "o bicho anda aí!". Cá por nós, vêmo-nos embrenhados numa torrente agridoce de situações particularmente desagradáveis, que têm especialmente que ver com o mundo dos humanos e as suas complexidades. Primeiro, roubaram-nos uns trinta quilos de azeitonas. Após a apanha, tínhamo-las deixado de molho no rio, com fé em voltar a vê-las - desamargadas - prontas para entrar na salmoura especial que o Rodrigo faz com uma receita coreana. Azeitonas à vista? cá nada! A azenha e as rochas, todo aquele musgo, nem uma palavra. A Dona Leonor lá nos explicou algumas das regras locais que regem o acesso ao rio (e a todas as coisas que lá se encontram). Vai-se a ver, e tudo o que está nas orlas do rio é de todos - simples, e sem exceções - o que inclúi sacos de azeitonas de molho, claramente deixadas por alguém que as apanhara... Ficámos a saber que, um pouco mais acima, no nosso terreno, passa um "corgo" - um pequeno curso de água, com alguma força, vá... - que ninguém visita, a não ser a própria Dona Leonor, e um rapaz de Eiró, que anda sempre por aí à procura de ouro, com o seu detetor de metais. De vez em quando, quando encontra uns centavos, oferece-os prontamente às pessoas. Há que dizer que nem todas as azeitonas se perderam! Calma... estas foram as que nos fizeram deixar de as voltar a pôr de molho no rio. Antes destas, a nossa confiança era só toda e plena, pois era o que tinhamos andado a fazer, com sucesso, desde o início das apanhas. Muitas estão já que se provam, ainda gasosas, mas bem deliciosas, a sair dos potes de vidro que nem bombons! Ai ai que estranhas maravilhas, as azeitonas... Oliveiras e seus frutos de parte, os cavalos da Leonor não nos têm dado grande descanso... Antes de termos vindo para cá, estes quatro garranos arraçados foram deixados a ambientarem-se - diga-se de passagem - àquele que é o terreno mais fixe de Riodouro. Claro está, por ser um deslumbre cá na zona, os cavalos - bem sabidos das coisas da vida - decidiram que esta seria a sua nova casa. Têm água, têm comida, até casa têm. Casa mesmo, sim... Os cavalos encontraram uma forma de entrar na casa (que os humanos tinham construido e, há mais de trinta anos, abandonado) e viviam lá dentro. Cagaram o chão todo, e deixaram tudo num estado... natural... Uma certa parte de nós delicia-se com estes quatro belos seres a correrem livres por aí. Uma certa outra parte faz contas à vida, ao ver massacradas, por vezes até mortas (por simples e curiosas dentadas), as árvores que temos vindo a plantar. [Em várias culturas orientais, nomeadamente a chinesa e a japonesa, o número quatro é símbolo de azar, de má fortuna profunda. "Yon" ou "Shi", quer inclusivamente até dizer morte...] Indisciplinados, corajosos, ou masoquistas, os cavalos não se acanham à vista do famoso fio laranja - tipicamente eletrificado - que supostamente deve meter o devido respeito em toda essa bicharada. Passados dias a ponderar sobre começar (ou não) a fechar o terreno, decidimos que, para já, teríamos mesmo de tomar algumas medidas, mas não daquelas drásticas, apenas das suaves, daquelas flexíveis e graduais... Começámos por desenhar e instalar setenta e cinco metros de vedação de aço na zona norte do terreno, que dá para o caminho velho de Eiró. Depois, encetámos um plano de escorraçamento dos bichos, coitados. Após duas tentativas falhadas, em que aquelas patas galopantes nos fintavam que era uma alegria, a correr que nem o senhor cabeludo do Brave Heart, lá conseguimos enxutar os cavalos para fora dos nossos confins. Com isso, fechou-se, num abrir e fechar de olhos, o último pedacinho de vedação e pronto! Era uma vez os cavalitos. Aquela semana de lama e arames, os cortes nas mãos e a pele talhada, o trabalho à chuva e aquelas húmidas capas (supostamente impermeáveis)... tudo nos serviu, enfim, encerrados. A verdade é que não passou uma semana, e a vedação tinha sido cortada numa certa parte, de cima a baixo, durante a noite, por caçadores. Não só entraram os caçadores, a ver se interpolavam a hora de jantar dos escarafunchantes javalís, como voltaram a entrar para o lado de dentro o raio dos cavalos. Estava o terreno a ser ocupado, de novo, por tudo e por todos, de todas as maneiras, como se de um campo multi-usos se tratasse... Entretanto, evitámos entrar em guerra e já conversámos com os vizinhos sobre estas situações; aprendemos algumas manhas locais e começámos a trabalhar de uma forma um pouco mais engenhosa. É que essa é a realidade. O Carvalhal é, de facto, um campo multi-usos. Sempre foi, sempre será, e é assim que deve ser. Tudo o que é preciso, é um pouco de regra; um nadinha de articulação, e muita diplomacia entre os humanos... Vieram os sinais de não caça; vieram mais uns metros de vedações, que utilizamos para proteger pequenas hortas aqui e ali; combinámos com a Leonor termos os cavalos nuns terrenos mais acima, longe da perdição que é, para eles, enfiarem-se os quatro no Carvalhal; e já não deixamos nada de molho no rio de baixo. Assim se vai aprendendo as manhas do sítio e, acima de tudo, assim vamos dando sinais claros e cordiais da nossa presença a todos os que já frequentavam este lugar antes de nós. Entretanto, o sol cá vai voltando, aos poucos, e aparecem dezenas de plantas comestíveis - comida gratuita, portanto - por todos os cantos! A primavera vem aí... ler sobre: Uma casa onde morar
O calor que anteriormente nos inundava os dias de verão ia-se desvanecendo num outono ameno e contemplativo. Pensávamos agora em como íamos entrar nesta nova estação, visto os dias se começarem a encurtar e as noites a fazer-se sentir. Olhávamos agora para a casa com novos olhos, sentido que eventualmente teríamos que nela procurar refúgio. Aos poucos conseguimos conquistar território e os cavalos resguardavam-se agora no andar de baixo, construído para tal efeito, deixando o soalho de cima à espera duma boa recuperação. A casa apresentava-se de forma retangular, por construções que se haviam adicionado à medida que os anos passavam, e que gradualmente iam piorando. Na parte mas bem conseguida, encontrava-se uma era que tinha tomado conta da ponta norte do telhado e lhe dava uma verdadeira peruca cabeluda, fazendo-se acompanhar de troncos grossos que se entrelaçavam entre pedras e cimento. Foi uma verdadeira ensarilhada que tivemos que desemaranhar, e enquanto o Rodrigo lhe dava no serrote, a Sara utilizava a tesoura de poda que já considerava a sua ferramenta de eleição. Esta veio a provar-se essencial quando demos meia volta para o lado sul da casa onde já só se encontravam silvas que desciam como cascatas do telhado. Parecia realmente haver outra estrutura traseira mas era impossível lá chegar. Diziam à Sara para não ligar; havia tanto que fazer no terreno ainda que não valia a pena estarmo-nos a preocupar com a casa. Mas a vontade de descobrir o que ali se encontrava era maior. E se desse para lá morar? Começou a desbravar silvas com mais de três metros durante horas a fio, no que parecia ser entrar por um matagal, quando no entanto só poucos centímetros se avançava. Literalmente nasciam do telhado, em ninhos que agarravam pelas raízes bocados de terra que se tinham acumulado nas telhas antigas. Eventualmente entre cortes e arranhões chegou até a uma porta, que de início não se fazia ver. Ao abri-la, viu uma igual do outro dia, que dava continuidade para a parte de trás da casa, também ela uma continuação estonteante de silvas. As portas já só metade de si eram, mas a felicidade de encontrar um pequeno abrigo aconchegante superava qualquer visualização de acabamento imperfeito. O chão, coberto com um manto significativo de palha, já se assimilava a um colchão que poderia receber a nossa tenda num futuro próximo. Dado o sucesso da descoberta, decidiu que estava também na hora de limpar o outro manto, desta vez de estrume, que tinha sido acumulado no soalho na parte de cima da casa. Juntou velhas teias de arranha à mistura, que decoravam as paredes caiadas de pedra, e assim, limpando por baixo e ao lado, em tempo recorde se reavivava uma casa. O Rodrigo, atarefado com outros afazeres do campo, veio ver o trabalho feito em que nem queria acreditar. Juntámos o estrume à porta em monte, que mais tarde se transformou miraculosamente em sementeira. Olhámos uma vez mais para o soalho agora coberto só de pó, e para o telhado que em partes tinha ainda um forro de madeira a combinar. Era aliciante a ideia de vivermos na casa principal, com janelas que mesmo semi partidas davam vistas para o que era a nossa vida terrestre. Decidimos, no entanto, que talvez fosse ainda cedo arriscarmo-nos a assentar naquele chão. O telhado mostrava já indícios de chuva e, com soalho mole, não queríamos brincar. Combinamos então que o palheiro, com portas partidas que faziam vez de janelas, seria a partir de agora a nossa residência oficial. Como não podia deixar de ser, uma ida à Madeira deu direito a mais um livro da biblioteca do Rui Camacho, pai do Rodrigo, em forma de presente. Na verdade fomos nós que o tirámos sorrateiramente da prateleira em primeiro lugar, pois o livro chamava-se ‘Construções Primitivas em Portugal’. Depois de páginas de estruturas belíssimas de materiais locais, encontrámos encantados várias casas de telhado de colmo que remetiam não só para Portugal continental mas especificamente para Cabeceiras de Basto e arredores. Ao lermos mais a fundo, aprendemos que a ‘El Rei’ eram entregues também giestas como pagamento, para cobrir os seus aposentos reais. Parecia que as giestas que nos rodeavam nos montes acima da casa, agora descidas à consideração de pragas, teriam sido outrora cobiçadas e deveras utilizadas. Montes delas, criadas pela terra e sem custo acrescido, prontas a serem o nosso telhado. |
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Sara Rodrigues Categorias
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May 2024
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