diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: As durezas do inverno
Dizem-nos que este ano é que foi; que foi o pior, o mais frio, o mais austero. Nunca mais passavam as chuvas e havia dias em que se vivia de noite. Quando a luz nos tocava as peles, a névoa, permanente, lembráva-nos de que nada era seco. Não que tudo isto seja mentira, ou que seja, de todo, irrelevante constatarem-se alguns dos mais opressivos factos da vida nortenha, mas este passar por Janeiro tem-nos pesado mais do lado social das coisas, do que do lado em que nos confrontamos com as expressões invernais desta recalcante altura do ano. Lavar o corpo com a água do rio - postos três graus negativos - tem-nos sabido inigualavelmente bem. Ir dormir bem antes de se terem apercebido as cidades de que o sol já la se foi, frescos e reverberantes das partes todas do corpo, é trabalho só do inverno. Esta pulsação, insistente, do sangue quente, a ferver-nos o ar em roda um do outro é, estranhamente, um bem inexplicável da vida escura das seis e meia da tarde (que é noite). Acabado um dia de trabalho físico, corporalmente árduo e extenuante, a mística das névoas pálidas, deslizando vale abaixo, oferece a todas as coisas uma alma maior, um qualquer mistério, sempre vivo, assustadoramente arregalado, ainda que convidativo. A Helena - mãe do Rodrigo - quando a temperatura desce da marca certíssima dos dezasseis graus, grita sem falta: “ai que me vão rachar os ossos!!!”. Isto é na Ilha da Madeira, que fica na Placa Africana. Por isso, pensou que tínhamos morrido congelados, por não lhe termos retribuído uma chamada perdida, num destes dias, em que tentávamos poupar cada pinga da bateria dos nossos telemóveis, a ver se conseguíamos enxergar as coisas que comíamos no escuro do granito serrado. Estamos a ficar numa tenda, pequenina, dentro de uma casa de pedra, a medir cinco de cada lado, e que já serviu de abrigo para as vacas que pastavam cá no Carvalhal. Agora, é a nossa casa e, ainda que provisoriamente, nos poucos tempos que passaram, aprendemos a gostar muito dela. Embora esteja pessimamente construída, e corra um ar gelado por entre as duas portas (às quais lhes faltam metade das tábuas), esta é a nossa casa. É onde dormimos, onde cozinhamos, onde nos vestimos e despimos todos os dias, e onde o Rodrigo anda descalço, ainda que se vejam mais aranhas que palha. Por baixo da tenda, a palha é o que nos separa os ossos das rochas. O chão é a rocha viva da montanha, que foi picada - mas não demasiado - para aparentar ter a forma plana de um chão. Plano o suficiente, ter-nos-á este chão, até nos mudarmos para a casa maior, aqui ao lado, e que começaremos por recuperar - primeiro o telhado, depois o soalho - aos poucos, aos pouquinhos… Este Janeiro tem-nos pesado de forma diferente. As pessoas dizem-nos que este ano está a ser um pesadelo; porque chove, porque está frio; "o chão gelou!" e "o bicho anda aí!". Cá por nós, vêmo-nos embrenhados numa torrente agridoce de situações particularmente desagradáveis, que têm especialmente que ver com o mundo dos humanos e as suas complexidades. Primeiro, roubaram-nos uns trinta quilos de azeitonas. Após a apanha, tínhamo-las deixado de molho no rio, com fé em voltar a vê-las - desamargadas - prontas para entrar na salmoura especial que o Rodrigo faz com uma receita coreana. Azeitonas à vista? cá nada! A azenha e as rochas, todo aquele musgo, nem uma palavra. A Dona Leonor lá nos explicou algumas das regras locais que regem o acesso ao rio (e a todas as coisas que lá se encontram). Vai-se a ver, e tudo o que está nas orlas do rio é de todos - simples, e sem exceções - o que inclúi sacos de azeitonas de molho, claramente deixadas por alguém que as apanhara... Ficámos a saber que, um pouco mais acima, no nosso terreno, passa um "corgo" - um pequeno curso de água, com alguma força, vá... - que ninguém visita, a não ser a própria Dona Leonor, e um rapaz de Eiró, que anda sempre por aí à procura de ouro, com o seu detetor de metais. De vez em quando, quando encontra uns centavos, oferece-os prontamente às pessoas. Há que dizer que nem todas as azeitonas se perderam! Calma... estas foram as que nos fizeram deixar de as voltar a pôr de molho no rio. Antes destas, a nossa confiança era só toda e plena, pois era o que tinhamos andado a fazer, com sucesso, desde o início das apanhas. Muitas estão já que se provam, ainda gasosas, mas bem deliciosas, a sair dos potes de vidro que nem bombons! Ai ai que estranhas maravilhas, as azeitonas... Oliveiras e seus frutos de parte, os cavalos da Leonor não nos têm dado grande descanso... Antes de termos vindo para cá, estes quatro garranos arraçados foram deixados a ambientarem-se - diga-se de passagem - àquele que é o terreno mais fixe de Riodouro. Claro está, por ser um deslumbre cá na zona, os cavalos - bem sabidos das coisas da vida - decidiram que esta seria a sua nova casa. Têm água, têm comida, até casa têm. Casa mesmo, sim... Os cavalos encontraram uma forma de entrar na casa (que os humanos tinham construido e, há mais de trinta anos, abandonado) e viviam lá dentro. Cagaram o chão todo, e deixaram tudo num estado... natural... Uma certa parte de nós delicia-se com estes quatro belos seres a correrem livres por aí. Uma certa outra parte faz contas à vida, ao ver massacradas, por vezes até mortas (por simples e curiosas dentadas), as árvores que temos vindo a plantar. [Em várias culturas orientais, nomeadamente a chinesa e a japonesa, o número quatro é símbolo de azar, de má fortuna profunda. "Yon" ou "Shi", quer inclusivamente até dizer morte...] Indisciplinados, corajosos, ou masoquistas, os cavalos não se acanham à vista do famoso fio laranja - tipicamente eletrificado - que supostamente deve meter o devido respeito em toda essa bicharada. Passados dias a ponderar sobre começar (ou não) a fechar o terreno, decidimos que, para já, teríamos mesmo de tomar algumas medidas, mas não daquelas drásticas, apenas das suaves, daquelas flexíveis e graduais... Começámos por desenhar e instalar setenta e cinco metros de vedação de aço na zona norte do terreno, que dá para o caminho velho de Eiró. Depois, encetámos um plano de escorraçamento dos bichos, coitados. Após duas tentativas falhadas, em que aquelas patas galopantes nos fintavam que era uma alegria, a correr que nem o senhor cabeludo do Brave Heart, lá conseguimos enxutar os cavalos para fora dos nossos confins. Com isso, fechou-se, num abrir e fechar de olhos, o último pedacinho de vedação e pronto! Era uma vez os cavalitos. Aquela semana de lama e arames, os cortes nas mãos e a pele talhada, o trabalho à chuva e aquelas húmidas capas (supostamente impermeáveis)... tudo nos serviu, enfim, encerrados. A verdade é que não passou uma semana, e a vedação tinha sido cortada numa certa parte, de cima a baixo, durante a noite, por caçadores. Não só entraram os caçadores, a ver se interpolavam a hora de jantar dos escarafunchantes javalís, como voltaram a entrar para o lado de dentro o raio dos cavalos. Estava o terreno a ser ocupado, de novo, por tudo e por todos, de todas as maneiras, como se de um campo multi-usos se tratasse... Entretanto, evitámos entrar em guerra e já conversámos com os vizinhos sobre estas situações; aprendemos algumas manhas locais e começámos a trabalhar de uma forma um pouco mais engenhosa. É que essa é a realidade. O Carvalhal é, de facto, um campo multi-usos. Sempre foi, sempre será, e é assim que deve ser. Tudo o que é preciso, é um pouco de regra; um nadinha de articulação, e muita diplomacia entre os humanos... Vieram os sinais de não caça; vieram mais uns metros de vedações, que utilizamos para proteger pequenas hortas aqui e ali; combinámos com a Leonor termos os cavalos nuns terrenos mais acima, longe da perdição que é, para eles, enfiarem-se os quatro no Carvalhal; e já não deixamos nada de molho no rio de baixo. Assim se vai aprendendo as manhas do sítio e, acima de tudo, assim vamos dando sinais claros e cordiais da nossa presença a todos os que já frequentavam este lugar antes de nós. Entretanto, o sol cá vai voltando, aos poucos, e aparecem dezenas de plantas comestíveis - comida gratuita, portanto - por todos os cantos! A primavera vem aí...
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ler sobre: Bolota não é café, é bolota
Ok, estava frio. Mas frio, frio, não são graus positivos (o que é sempre positivo). Temos amigos italianos, que vivem nas montanhas de lá de cima - quase na Áustria - e que nos contam do que é rapar frio a sério. Esperar tipicamente vinte graus negativos todos os anos não é coisa que conheçamos de todo… No escuro conforto da nossa cova, contaramos dias para o natal, passando as horas da ceia em frente ao fogo. No natal, voltámos ao Porto para passar as festas de quarentena com a Irene (mãe da Sara) e com a sua amiga Carla. Surpreenderam-nos com uma boa oferta de várias árvores e arbustos de fruto. A meio de vários tipos de framboesas e outras bagas, a mais peculiar de todas, e que nos tem surpreendido pelo vigor e pela resistência às geadas, foi a “macieira dos pássaros”; uma curiosa variedade, entre Malus pumila e Mauls sylvestris, que dá uns perinhos muito pequeninos, perfeitinhos, e que os pássaros adoram devorar, quando mais nada aguenta aquela cor nesta altura do ano. Assim como os pássaros, antes da hibernação, também nós vamos encontrando os últimos frutos que o terreno nos dá. É claro que as laranjas abundam nesta época, em que são precisamente mais necessárias, mas uma pessoa não pode passar a vida a engalfinhar citrinos… No lado mais balanceado das coisas nutritivas, já escassam as bolotas pelo chão. Entre nós e os javalis, os preciosos frutos dos nossos carvalhos vão-se consumindo. Muitas, têmo-las de molho, outras a fermentar (para que as taninas se acalmem); outras já estão moídas em farinha (com a qual o Rodrigo faz pães deliciosos), e agora estamos a experimentar fazer “café” com vários níveis de torragem diferentes. Vamos lá ver uma coisa, quando dizemos “café de bolota”, não é mesmo café! É mesmo bolota fermentada e torrada como se faz com o café! Bolota é bolota, não é café! Não tem cafeína, mas é possessora de uma abundância nutricional invejável, parecida com a da sua prima castanha (da família das fagáceas) mas ainda mais densa e complexa. Os romanos diziam que a bolota era o alimento dos povos invencíveis, sendo que tiveram sérios problemas em lidar com os persistentes povos galegos - aqueles tipos de sardas nas ventas e tranças nas barbas - que tinham a bolota como um dos seus alimentos principais! De setembro a outubro, as bolotas já caíam; caíam as que tinham bicho [Curculio elephas e outras espécies do género Cydia]. Cerca de metade das que apanhávamos tinham todas bicho, o que é normal. Estas espécies evoluíram em coexistência com as fagáceas (carvalhos, castanheiros, faias etc.), ou seja, os ciclos de reprodução das árvores e dos insectos estão sincronizados de forma harmoniosa. Os carvalhos produzem nunca menos bem por causa da presença destas pequenas larvas dentro dos seus frutos. Depois de terem comido bastante e de terem atingido a maturidade sexual, os gorgulhos saem da bolota - que já terá caído no chão - para se enterrarem, e lá esperarem pelo próximo ano. Isto acontece tudo antes de novembro, por isso, a partir daí, as bolotas vêm quase todas sem bicho; limpinhas, intocadas, relusentes que até parece que foram polidas! Isto, pois os bichinhos já trataram dos seus negócios todos e agora fica a árvore, sozinha, a produzir bolotas que, com alguma sorte, poderão um dia vir a ser grandes quercus centenários. Atenção, que já vi germinarem algumas bolotas que tinham sido furadas por bicho. Deram origem a carvalhos bem saudáveis. Em suma, o bicho não faz mal nenhum mal à produção! Aliás, até o pode melhorar nalguns aspetos... Aprendemos com o galego César Lema Costas que a bolota fica com propriedades nutricionais ainda mais interessantes se tiver (ou tiver sido visitada por) bicho. Basicamente, descem os açúcares e as gorduras, sobem as proteínas. A coisa fica muito próxima do perfil destes “novos” super-alimentos que aparecem nas revistas e na televisão a toda a hora ["Para emagrecer!", "Bons para a memoria!", "Contra o Covid!"]. O nosso café, ou mesmo a farinha de bolota têm, de facto, sido ligeiramente mais gabados por todos aqueles a quem oferecemos as nossas iguarias, precisamente nos tempos do bicho. Em chávenas pequeninas, aquela bebida escura, quente e saborosa, de textura aveludada e cremosa, a muitos faz lembrar caramelo, cacao e alfarroba, cevada da boa, chicória ou até mesmo café, daquele mesmo bom, adstringente que baste, nunca demasiado torrado, com uma acidez controlada e de oleosidade naturalmente aromática. O pão, que sempre arregala quem o mete na boca, tem trazido à mesa muitas boas conversas sobre quão bom é poder ter terra nas entrenhas. Quanto à integralidade dos nossos produtos, pedimos a todos os nossos amigos vegetarianos e vegan que compreendam que a naturza não quer ter nada a ver com segregação de espécies. Talvez mais que tudo, a escala importa... |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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May 2024
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