diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Comer bolo do caco às marretadas
Nos últimos dias, a Sara tem acordado cedo, para andar de câmara na mão, por aí, pelos montes, cheia de vontade de tirar partido da luz matinal desta altura do ano, que tem sido realmente fantástica. Esta luz, baixa e razante, corta cada galho, cada botão levantando-se, que nem lâmina impossivelmente afiada, ao mesmo tempo que embebe as feridas limpas num licor doce, de névoa não fria de mais. Não conseguindo capturar - nem com imagens nem com letras - o verdadeiro espírito deste lugar, Fevereiro tem-nos passado com os ares mais lúcidos. Como sempre, há muito que fazer; há tudo por fazer. Há árvores velhas que caíram de podres, agora a tapar caminhos (belos, ainda assim), há hortas por vedar (contra os nossos amigos porcos bravos, tão curiosos), há heras a esconder construções (hediondas, horrorosas, que o que mais vale é uma marreta na mão : uma casa no chão; que poder, que força, que dor nas costas!) Como as árvores mortas, também o velho barraco que alojara o alambique (que entretanto foi “levado”) não passa nunca a ser desperdício. Com os bacocos blocos de cimento - podres, quebradiços - montámos uns bancos e uma mesa bem parvos que, ainda assim, nos remedeiam os almoços e nos ajudam no trabalho manual, aqui no terraço. É altura de trabalhar madeira, já que há tanta à mão de pegar. Como temos duas hortas por vedar, há estacas e cancelas para constuír. Quando era adolescente, o Rodrigo frequentava muito a oficina de um luthier seu amigo, lá no Funchal, que constrói cordofones tradicionais madeirenses. Nesse tempo, como andava com umas ideias estranhas na cabeça, foi para lá para a loja, com o plano de aprender a fazer espadas (daquelas com que se corta uma pessoa em dois com um golpe só). Entretanto, por astúcia do mestre Carlos Jorge, lá aprendeu o Rodrigo a trabalhar com madeiras; a selecionar, a cortar e a aparar dos brutos aos finos, a embutir, a dobrar, a colar, a cunhar, a lixar e a polir, a tratar e a desfrutar do trabalho feito. Entretanto, longe da ilha, nunca mais houve contacto com esta arte de se fazer de uma coisa morta, uma coisa viva, até que, agora, no campo, finalmente arranjámos ferramentas decentes - serras japonesas, e lâminas das boas - com que é possível trabalhar a sério. Não gostamos de pregos, por isso, sempre que a madeira permite, todos os objetos são fortemente aconchegados apenas com cunhas cobertas e pontões. É uma maravilha ver os objetos ganharem a sua nova forma, sem pensarmos, sem sabermos; a utilidade manifestando-se nas coisas das mãos. Ainda pensámos que o soalho velho da primeira casa serviria como peça de uma outra qualquer construção, mas o caruncho não nos deu esse prazer; deu-nos outro. Em frente à salamandra, sempre temos lenha que pega particularmente bem, com todos aqueles orifícios por onde se injeta o oxigénio que nem motor de avião. A salamandra, comprámo-la em segunda mão. Veio de um bar de cocktails chamado Hawai Coffee, que ficava no meio de um pinhal, à beira de uma estrada nacional, em Amarante. O Café faliu durante o covid e nós fomos lá buscar-lhes os últimos folgos de calor pseudo-tropical. Gostamos muito de ficar em frente ao fogo até a hora de dormir, sentados num banquinho de vimes onde, com jeitinho, cabemos bem os dois. Encontrámo-lo no Porto no meio da rua, atirado para o lixo, durante um dos nossos longos retornos para casa a pé, às tantas da madrugada. Todas as noites, temos feito jantares quentes, ao lume, em potes e frigideiras de ferro fundido. E temos comido bolos do caco, dos melhores que alguma vez já se fizeram; bem fermentados, tanto fofos quanto estaladiços. Sabemos que um dos maiores clichés é dizer o que se segue, mas comida feita na lenha é verdadeiramente imbatéivel... Calma, nem todos os dias são cobertos de ação, com marretadas, cortes, pontapés e o raio que o parta! Também há vezes em que uma pessoa se dedica a olhar para as coisas e a andar por aí. Por vezes, juntamos o útil ao agradável e semeamos grandes transformações ao sabor de gestos tão leves quanto o vento. Assim foi, o dia em que decidimos propagar milhares de sementes das nossas queridas e oportunistas pampas argentinas (Cortaderia selloana). Há quem nos queira ver a arder no inferno por termos apoiado a propagação de tal praga, de tamanha infestação, que estrangeirada medonha, cruzes! A verdade é que estas belas ervas são bem úteis e, sem dúvida, muito uso lhes daremos assim que comecem a crescer vigorosas, por todo o lado! Lembremo-nos do seguinte: Só há invasão em sistemas falidos.
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ler sobre: Idas e vindas
Em agosto, recebemos muitas visitas. Da Madeira, vieram os pais do Rodrigo - o Rui e a Helena - acompanhados da Mariana (a irmã do Rodrigo) e do seu namorado Filipe. Como bons madeirenses que são, mal pisaram terra landrina, aperceberam-se de que havia cortes na topografia do terreno que indicavam a presença remota de um qualquer curso de água; agora quase impercetível. Em instantes, arregaçam as mangas, dobraram as bordas das calças ao nível dos joelhos, e desataram a abrir uma enorme levada! E quanta água! O terreno já não via aqueles correntes metros cúbicos havia muito, muito tempo. Num abrir e fechar de olhos, os campos bebiam, da nascente mais próxima, uma água límpida e verdadeiramente revitalizante. E sentia-se mesmo, pela pele, a energia entrando, de baixo para cima, entranhando-se em nós. Com os ilhéus, amantes da queda potencial e sedentos de irrigação, também veio a mãe da Sara - a Irene - para se juntar à festa e ajudar na documentação audiovisual. Veio do Porto no seu próprio carro, enquanto que os outros já tinham deixado Lisboa um dia antes, espremidos num carro alugado qualquer. Para festejar os quinhentos metros de levada que se haviam correr abertos em apenas dois dias, fomos todos festejar à casa de pasto mais famosa da região: O Nariz do Mundo! É um daqueles sítios em que se come quantidades inimagináveis e abusivas de carne, de pão, de vinho... e há mel e água ardente agrícola a jorrar de cântaros e bicas, e tudo e tudo é tão tanto que uma pessoa enfarda até enfartar, e ou rebenta, ou vai a rebolar pelos montes abaixo, de Cambeses para Cabeceiras. No fim do jantar, vieram deixar-nos ao terreno, antes de irem dormir a uma casa noutra aldeia que tinham alugado todos juntos. Como eram carros a mais, a Irene deixara o dela, mesmo à boca do caminho de terra que vai dar ao nosso terreno. Assim, sempre se poupava alguma gasolina! Descemos, caminho abaixo, de lanterna de telemóvel nas mãos, tremendo, fosse do frio do sereno, fosse de algum receio que ainda tínhamos; o terreno ainda não nos era a coisa mais familiar de todas... A meio daquele quilómetro a pé, batendo de pés em pedras e troncos, atabalhoadamente, tentanto enxergar o que se passava a poucos metros adiante da ponta do nariz, fomos surpreendidos com uns guinchos, tão estridentes, quanto fortes, e quão estranhos! Que coisa medonha, teria sido aquilo que, durante uns poucos segundos nos petrificou completamente. O resto do caminho foi feito em hiper foco total, tudo era gesto, som e potencial ameaça, as ervas, as gotas, os insectos tudo parecia estar a mil, aumentado, atormentadoramente vívido e presente! Bem, não aconteceu nada, e lá fomos dormir para a tenda enrroscados que nem uns techugos. De cansados, nem foi difícil ignorar tal evento, tão medonho e insólito. Um dragão ou lá o que teria sido, gritando, no meio da noite, num vale recôndito enquanto dois humanos desciam a pé com uma luzinha elétrica nas mãos... No dia seguinte, liga-nos o Filipe de manhã, com tom de caso, dizendo: “camarada, o carro da Irene suicidou-se”. Era um Volvo que, embora tivesse servido a dona muito bem, durante muitos anos, já estava a dar de si, e a ameaçar parar numa qualquer estrada, num dia qualquer, por uma razão qualquer, e aí ficar, sem dar explicações a ninguém. Mas ninguém imaginaria que o fim fosse tão dramático. O frio da noite forçara os travões dilatados pela descida cautelosa a cencolherem-se; a diminuírem de volume, pouco a pouco, tanto tanto, que foi o suficiente até o senhor volvo deslizar sorrateiramente pela rocha a baixo até ir apenas parar de focinho pregado num grande penedo, setenta metros abaixo… Nunca nos teria ocorrido, por sermos parvos ou por estarmos estafados de termos sido afincados levadeiros de sol a sol, que aquela guincharia da noite passada fora, na verdade, o carro da mãe da Sara, abicando-se da cocha a baixo... Fora o trauma, tal insólito evento não poderia ter sido o melhor cartão de visitas. No dia seguinte, tínhamos dez pessoas da aldeia mais próxima (Eiró) a ajudarem-nos a retirar aquele monte de sucata do monte. O reboque, com toda a oficialidade que lhe confere o protocolo normal, neste caso, não ajudou nem um pouco. Ao averiguar a gravidade da situação, de cima, da estrada, o reboqueiro só nos desejou boa sorte, ou com a multa que teríamos de pagar se deixássemos o carro ali, ou com o preço do helicóptero… e foi-se embora. Quem nos salvou o dia? As pessoas de Eiró. Engenhosos e generosos, arranjaram dois tratores, um puxando o outro, com calhas de andaimes e mais umas parafernálias para deixar o serviço pronto em condições. Que prontidão, que distreza! Tudo se despachou numas meras horas, e houve muita conversa, ainda que às vezes embebida de nervos miúdinhos pelo meio. Depois da loucura do carro, e de ter ficado a Irene a esconjurar males à Landra durante uns tempos, vieram, desta vez de Londres, a Mariana e o seu namorado Sam. O Sam, como grande cheff que é, perguntou-nos logo: “onde é que cozinham?” seguindo com "o que é que vamos preparar hoje?". Nós ainda não cozinhávamos… Comíamos, ou a comida pré-cozida que trazíamos do Porto, ou coisas cruas e pronto. O choque que foi, a ausência de fogo para um cheff bem educado... Em minutos, montou um fogareiro de pedras e telhas velhas e preparou-nos um arroz de tomate malandro com pimentos padron. Que maravilha! Na landra já havia água corrente (ainda que no chão) e já se cozinhava (ainda que na chama viva, e ficassem algumas crostas, um pouco esturricadas de mais, mas era o gosto do momento!) |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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Histórico
October 2024
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