diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Energia livre
Nunca tivemos tantas visitas de uma só vez! Vieram os nossos amigos Mikhail e Uriel, que escolheram Lisboa como a sua nova casa (depois de terem também deixado Londres) e passaram cá numa viagem de reconhecimento ao norte. De seguida, apareceram a Mariana (irmã do Rodrigo) e as suas amigas Denise, e Júlia; seguidas do Manuel (que conhecêramos em Pitões da Júnias, num louco projeto de escultura megalítica) e do Lorenzo e da Rita (que também conhecemos pelas terras do norte, mas desta vez em Picote (Trás-os-Montes prfundo) num grande "não-evento" no pico da primavera. É uma grande alegria poder trazer tantos amigos cá! Desde os tempos em que se faziam vindimas a sério nesta terra, deve ter sido a primeira vez em que tanta gente pisou a Landra ao mesmo tempo. Sobre o soalho que, no início, julgávamos que fosse cair se espirrássemos, dormiram oito pessoas num quarto só. Uma bela festa em que ninguém morreu, portanto. Já se está a ver que é só no verão que as pessoas querem vir cá! Quando a seca aperta lá para baixo, querem todos a água e o fresquinho do norte… Ah poi é… E ainda não temos o conforto do típico habitáculo moderno, em que correm, por tubinhos de calibres diferentes, a água e a luz, por vezes o gás, e vão todos saír a dispositivos variados, no teto, nas paredes, nos chãos, nas pias… Aqui, os mais exigentes dos nómadas digitais ficam a apanhar seca… Temos um minúsculo painel solar, que consegue gerar volts suficientes para carregar telemóveis e pequenos utensílios, mas ainda não temos um sistema elétrico propriamente dito e não queremos ter nada a ver com a ED(CV)P:(Eletricidade Dos Chineses Vendida a Portugal). Estamos a estudar eletrotecnia para conseguir vir a montar o nosso próprio sistema independente da rede e os prospetos são muito promissores. E quanto a redes de distribuição, já temos uma, para a água! Fizemos um desenho todo catita e começámos a domar a essência da vida aos poucos, levando-a a todos os sítios em que montamos hortas novas com um sistema de irrigação gota a gota. Como crescem as coisas felizes, neste calor, ao sol, e com raízes felizes! Mas atenção, que isto não gira tudo só à volta da água e dos minerais! As nossas várias experiências com tipos de compostagem diferentes estão a dar muitos frutos, literalmente.
0 Comments
ler sobre: Viagens e visitas
Este mês entrou-nos pela porta, de rajada, com uma data de visitas inesperadas; todas de Inglaterra, quase em modo de contra-blitz. O blitz, neste caso, não fora uma forte chuvada de bombas alemães, mas sim um pequeno virus que, ao precipitar, de leve, sobre vidas das pessoas, deixou mais moças do que se tivessem chovido vacas barrosãs. O sufoco já era bastante - e crescente - naquela não tão grande bretanha. O cocktail mais tóxico já lhes subia pela cintura; dali a nada dava-lhes pelo pescoço, a demolhar as orelhas daqueles que fossem mais baixotes. O “Brexitona”, também conhecido por “Coronexit”, não tem álcool, mas induz ao álcool; de formas tais que, na viragem dos dias - cada vez mais os mesmos, só que mais esturricados de cada um dos lados - ao primeiro sinal de se ouvir um trinco de porta a roçar para que se visse a luz do outro lado, quem pôde, correu pela vida em direção ao aeroporto mais próximo. Já quem não dispõe de tal privilégio, ficou a nadar onde tudo ainda mais se afunda. Pois é. Esta inóspita mistela de “sensações” - assim se referem alguns barmen finos às bebidas que misturam - tem efeitos secundários mais que dolorosos, ainda que localmente anestésicos. Como não temos televisão, e nem por hábito lemos informação de má qualidade em jornais mais ou menos subsidiados, soubemos por amigos e familiares que havia toda uma fuga britânica, e que nos bateria, brevemente, em maneira de onda pseudo-migratória. Ainda que com “brits abroad gone mad” estampado na testa, houve quem, com muita avidez, conseguisse resistir aos fáceis deslizes que facilmente acabam nos calores venenosos do Algarve. Na primeira fornada dos bons sobreviventes ao turismo de massas, vieram os nossos amigos Lucy & Dimitri. Visitaram-nos assim que puderam. Primeiro, passaram uns dias no Porto, e ainda dariam uns pulos por outras terras nortenhas, para reaver outros amigos que, entretanto, já se tinham escapulido, com gosto, das terras de nossa senhora dona rainha mãe. Gostaram tanto da experiência, que já estão à procura de um terreno lá para o meio da Inglaterra! Derretemo-nos de contentamento com a consciência de que a nossa influência, que pode ser vagarosa, é, no entanto, bem certeira. Sabemos que, um a um, vamos incentivando as pessoas - primeiro os amigos, depois os amigos deles - a mudarem de vida. E assim se faz uma revolução. O Dimitry é cowboy aos fins de semana. Isto é, lá em Kent, algures no meio de carvalhais e prados bem ingleses, há uma vila chamada Loredo [deve ler-se com um sotaque norte-americano de travo desértico]. Todas as sextas-feiras, há um bando de gente que sai dos seus trabalhos normais - muitas vezes bem compensados monetariamente pelo stress que exigem no centro de Londres - e que pega nos seus carros a motor - alguns dos quais já elétricos - para se dirigirem a Loredo [olha o sotaque!]. Aí, param as suas viaturas modernas num descampado, trocam de roupa mesmo dentro do automóvel - vestem linhos, cabedais, feltros e lãs mais brutas - e, só então, já desligados e escondidos os telemóveis, põem-se a caminhar, por veredas rurais até chegarem à civilização vitoriana, que animarão durante todo o fim de semana. No saloon - espaço comunitário típico de qualquer western que se preze - acendem as lamparinas a petróleo, começam os cozinhados em grandes panelões de ferro fundido, sacam das armas para as limparem de qualquer poeira ou ferrugem que se tenha acumulado desde a húmida semana passada, e vão-se lembrando das velhas musiquinhas fronteiriças via oeste. Um dia, quem sabe, chegarão à Califórnia, sem ter que chacinar demasiados povos indígenas. Na Landra, nos dias que correm, em vez de armas de fogo, temos um arco de teixo inglês [uns passos atrás, portanto] mas, em vez de lamparinas, temos uma luz LED recarregável com um pequenino painel solar [supostamente uns passos adiante]. Não se pode dizer, portanto, que estejamos num só tempo. Principalmente quando nos vêm visitar cowboys do século XIX (que nos terão alcançado por meio de transportes aéreos compostos por toneladas de metal, propulsionadas pela energia concentradíssima de restos mortais de animais e de plantas bem curtidas). Foi bom tê-los por cá uns dias pois, assim, sempre tivemos o pretexto de irmos conhecer as redondezas a pé, o que, sozinhos, não teríamos feito. Já nos tinham falado mil vezes de uma tal barragem que há aqui perto; que é gira, que é fantástica, que vale muito a pena ir lá nadar e passar um bela tarde. É uma estrutura artificial, montada para aparar a água de duas nascentes da Serra da Cabreira, e para tê-la à mão de semear para apagar fogos, caso estes apareçam misteriosamente nos terrenos florestais… Fomos lá e gostámos muito da experiência, embora a artificialidade ainda nos tenha causado um certo desconforto. Os carvalhos, aceres e pinheiros estão todos plantados com espaçamentos ridículos, supostamente para dar aquela sensação de parque de merendas, algo mais convidativo para famílias do que um bosque cerrado no meio do monte... Após se terem ido embora o Dimitri e a Lucy, nem passavam dois dias e já nos chegava a Roxanna à estação de autocarros de Cabeceiras. A Roxie é nossa amiga e colega no grupo de música contemporânea que mantemos em conjunto, o New Maker Ensemble. Também vinha pisgada de Londres assim que fora possível. É violoncelista do melhor que há e, hoje em dia, anda particularmente interessada em excavar afincadamente as suas próprias raízes iranianas. Não ficou muito tempo e, talvez por isso, a intensidade foi tanta, que estava que não se aguentava com as emoções, de tanta coisa que lhe mostrávamos e que a púnhamos a fazer, incluíndo acartar às costas e à cabeça umas boas sacas de lã cheia de cagalhões e mato... As saudades também já apertavam, pois havia uma data de meses - já a fazer anos, na verdade - que não nos víamos! Ao contrário dos cowboys, que estavam mais num registo de férias de barriga para o ar, a Roxie cá nos ajudou a fazer um montão de tarefas práticas. Estamos habituados a trabalhar com ela, seja em música ou no que for. Desta vez, foi no campo: plantámos montes de feijões e de cucurbitas (courgetes, abóboras, melões, melancias e primos afastados); cavámos mais um bocado de umas valas de dispersão e - talvez a melhor proeza de todas - reabrimos a velha levada que trazia água de uma nascente a mais de trezentos metros de distância até à casa! Até este momento, a casa tem vivido de pedras vivas, numa secura infindável. Só entrava água nesta casa quando chovia, e os buracos na cobertura desempenhavam bem a sua função, deteriorando tudo um pouquinho mais. Isso agora vai acabar. Daqui a nada, a cobertura refazer-se-á, e a água que se verá saindo por torneiras, cá dentro, virá, agora mais controlada, descendo graciosamente pelos caminhos reabertos. Levou um dia inteiro esta proeza. Ia o Rodrigo, na frente, com a sua catana a desbravar mato grosso; logo de seguia, a Sara, com um grande podão a aparar tudo um pouco além das primeiras linhas de corte e, por fim, a Roxie, aprumando os fetos e as silvas e retirando os ainda grados galhos esquecidos do meio do caminho. Assim, marcou uma grande nossa amiga, com a sua chegada, a chegada da água à nossa casa. Desta não nos esqueceremos. As despedidas são sempre uma chatice. As pessoas ficam tristes e caladas, cabisbaixas nas horas que nos levam àquele aceno final; aqueles abraços que nunca mais acabam. Tudo coisas boas, mas sempre muito pesadas. É como se nunca mais nos voltássemos a ver! Se tudo correr bem neste mundo das fronteiras virulentas, teremos uma série de concertos agendados com o New Maker Ensemble em Setembro. Não será assim tanto tempo sem cheirarmos o suor uns dos outros! Acabadas as visitas à Landra, virou-se logo a cassete de Junho para o lado B e passámos nós a ir, então, aos outros sítios. Como as últimas semanas tinham sido abundantes em água (da que cai do céu), não nos preocupámos grandemente em deixar o terreno nas suas próprias mãos. Dissémos-lhe "feliz solestício!" e fomos embora. Temos tratado bem dos campos e, por isso, com a vegetação saudável e variada que nos empenhamos vigorosamente em manter, os solos persistem, ricos, profundos e com grande capacidade de retenção. Assim, quando o verão chega, espreitando maroto, por entre as ervas de haste curta que, em primeiro lugar, deixam de ser verdes, a Landra cuida da sua própria saúde. As plantas e os fungos fazem o que fazem e os animais também. Tudo corre o mais que pode em direção à fase estival; face às flores e aos frutos da derradeira dança erótica de todas as coisas, querendo ser as próximas. Ficou a Landra, no Minho, a portar-se bem, e lá fomos nós. Primeiro, foi Picote. Houve lá um evento (ou melhor, como dizia o organizador: “um não-evento”) cheio de antropólogos e de filósofos, de alguns artistas e de pessoal da zona de Miranda do Douro e arredores com quem se passaram uns bons dias em torno de quantidades obscenas de carne, pão, azeite e vinho, e se mantiveram conversas intermináveis na adega local. O ponto alto foi o fantástico concerto da Mariana (irmã do Rodrigo), seguido por uma atuação ritualística dos mirandeses Galundum que, como já parece ser tradição (mais do que superstição), atraem trovoadas e chuvas fortes quando sacam as gaitas e as flautas tamborilheiras para fazer barulho (do bom!). Assim foi. No meio de Junho, choveu grosso em Trás-os-Montes profundo. Depois de Picote ainda fomos parar a Lisboa. A Sara tem uma peça em exposição no Pavilhão Branco da Galeria Municipal de Lisboa; uma em particular que é bem lixada de montar. Então, lá fomos com antecedência suficiente, num misto de férias e de trabalho, montar a exposição e ver amigos de longa data e outros novos que vão aparecendo naturalmente. Esta peça chama-se Degrees of Abstraction, e foi a peça que a Sara apresentou no final do seu mestrado lá em Londres. É uma instalação complexa e arrojada, cujas partes vão sendo ativadas por performance. A Sara, neste caso, como performer, vai perguntando às pessoas se querem ir abrindo - literalmente abrindo - a peça aos bocados, para se conseguir desvendar o que lá está, por debaixo de umas placas de cimento arenoso. Aos poucos, o que, no início, aparentavam propositadamente ser apenas pinturas abstratas de extremo “bom gosto” vão, no desenrolar das coisas, passando a ser legíveis como gráficos e diagramas, com significados próprios e concretos, diretamente representativos de parâmetros associados a problemáticas agrárias e geopolíticas. Eventualmente, os participantes chegam a pontos em que a Sara lhes pergunta se estão a fins de levar consigo - em plenas mãos abertas - alguns grãos de milho trangénico, ou mesmo samples de agroquímicos tóxicos, entre outros “brindes”, para além da torrente informativa que veste esteticamente a peça, sempre com um toque de humor negro e mordaz. É um trabalho que explicita o implícito, que inquieta, e que exige tomadas de responsabilidade; mostrando e concretizando os problemas que, na normalidade do dia a dia, são estrategicamente mantidos invisivalmente fora do alcance dos olhares comuns. Foram os trabalhos artísticos, particularmente os que a Sara fez nos últimos anos que, nas suas fases de desenvolvimento conceptual e estético, nos levaram a tomar o grande passo que foi termos trocado Londres pela Landra. Hoje, com a vida que mantemos, do lado prático das coisas, a arte que fazemos - mesmo quando ela é de cariz mais discursivo e intelectual - ganha, ainda assim, novas qualidades, novas faces, mais matéria, toda ela mais séria, mais real e mais útil, mais direta e, por isto tudo, inacreditavelmente mais poética, mais científica, mais experimentada, mais útil, mais verdadeira e honesta, mais completa. ler sobre: Melhor do que ouro
Setembro foi o mês do nascimento da Sara, há trinta anos atrás. Mas este não deixou de ser um renascimento. Foi uma viagem chegar até aqui, perceber que tínhamos vivido toda a nossa vida encarrapitados em tijolo e cimento, suspensos no ar por vontade da modernidade e empurrados pelo progresso. Os trinta anos do Rodrigo foram passados assim - ainda em Londres - enquadrados por paredes retas, em Maio deste ano. Na altura já guardávamos cascas de ovos para que, depois de esmagadas, as pudéssemos pulverizar na nossa horta de metro quadrado. Já fazíamos compostagem e aplicávamos chorumes de consolda, borragem e urtigas, mas foi só depois de chegarmos à Landra que as verdadeiras poções começaram a borbulhar. Há doze anos atrás, fomos levados para fora das nossas (já grandes) cidades do Porto e do Funchal. À procura de voos maiores, pouco a pouco, fomos percebendo que o ar se sentia cada vez mais pesado. A vista pairava já sobre arranha-céus que competiam, lado a lado, a ver quem chegava lá primeiro. Percebemos que não era bem o céu que procurávamos e, mesmo sendo ateus, acreditámos que se calhar o paraíso ainda era possível noutro lugar. Trinta anos até sentirmos verdadeiramente a terra nas unhas e nas mãos; uma força inexplicável de matéria viva que nos impulsiona eufóricos de sol a sol para o dia seguinte; numa plenitude que não sente cansaço. Reparávamos agora que tudo à nossa volta existia tanto em si como em potência, numa verdadeira alquimia que transforma merda numa riqueza bem maior do que ouro. No dia doze festejámos com visitas: mães, bebés, amigos e um clã de cavalos à mistura. Foi-lhes outra viagem chegar até aqui, entre silvas e eras e pedras no percurso. Sentámo-nos, por fim, ao pé do rio de corrente fria, em que só alguns se aventuraram a entrar. Também eles se questionavam se tal vida era mesmo possível; depois das casas, dos trabalhos, das contas para pagar, dos pequenos para sustentar. Tanto para carregar. Seria certamente precário viver sem eletricidade, sem casa de banho, nem água quente, nem canalização. E ali nos encontrávamos, precariamente ambulantes, mais felizes e livres do que alguma vez podíamos ter imaginado. Como seria se aquilo que há para além do conforto seguro que nos venderam fosse melhor? Certo é que pode não ser propriamente fácil chegar até aqui. No final de contas, como sujeitos civilizados de uma qualquer nação, o mais provável é não nos serem concedidos os direitos e os poderes que nos possibilitem viver autonomamente e a cuidar de nós próprios. Mas mesmo sem terras que nos passem de traz; mesmo que não nos ponham à frente as ferramentas para o cultivo da nossa própria liberdade; podemos sempre começar por acreditar que uma vida melhor é possível. Acreditarmos é meio caminho andado para lá chegarmos. Aqui tudo começa e acaba, e volta a começar. Nada é supérfluo, nada está a mais. O essencial é a essência, e essa a terra nos traz. ler sobre: Idas e vindas
Em agosto, recebemos muitas visitas. Da Madeira, vieram os pais do Rodrigo - o Rui e a Helena - acompanhados da Mariana (a irmã do Rodrigo) e do seu namorado Filipe. Como bons madeirenses que são, mal pisaram terra landrina, aperceberam-se de que havia cortes na topografia do terreno que indicavam a presença remota de um qualquer curso de água; agora quase impercetível. Em instantes, arregaçam as mangas, dobraram as bordas das calças ao nível dos joelhos, e desataram a abrir uma enorme levada! E quanta água! O terreno já não via aqueles correntes metros cúbicos havia muito, muito tempo. Num abrir e fechar de olhos, os campos bebiam, da nascente mais próxima, uma água límpida e verdadeiramente revitalizante. E sentia-se mesmo, pela pele, a energia entrando, de baixo para cima, entranhando-se em nós. Com os ilhéus, amantes da queda potencial e sedentos de irrigação, também veio a mãe da Sara - a Irene - para se juntar à festa e ajudar na documentação audiovisual. Veio do Porto no seu próprio carro, enquanto que os outros já tinham deixado Lisboa um dia antes, espremidos num carro alugado qualquer. Para festejar os quinhentos metros de levada que se haviam correr abertos em apenas dois dias, fomos todos festejar à casa de pasto mais famosa da região: O Nariz do Mundo! É um daqueles sítios em que se come quantidades inimagináveis e abusivas de carne, de pão, de vinho... e há mel e água ardente agrícola a jorrar de cântaros e bicas, e tudo e tudo é tão tanto que uma pessoa enfarda até enfartar, e ou rebenta, ou vai a rebolar pelos montes abaixo, de Cambeses para Cabeceiras. No fim do jantar, vieram deixar-nos ao terreno, antes de irem dormir a uma casa noutra aldeia que tinham alugado todos juntos. Como eram carros a mais, a Irene deixara o dela, mesmo à boca do caminho de terra que vai dar ao nosso terreno. Assim, sempre se poupava alguma gasolina! Descemos, caminho abaixo, de lanterna de telemóvel nas mãos, tremendo, fosse do frio do sereno, fosse de algum receio que ainda tínhamos; o terreno ainda não nos era a coisa mais familiar de todas... A meio daquele quilómetro a pé, batendo de pés em pedras e troncos, atabalhoadamente, tentanto enxergar o que se passava a poucos metros adiante da ponta do nariz, fomos surpreendidos com uns guinchos, tão estridentes, quanto fortes, e quão estranhos! Que coisa medonha, teria sido aquilo que, durante uns poucos segundos nos petrificou completamente. O resto do caminho foi feito em hiper foco total, tudo era gesto, som e potencial ameaça, as ervas, as gotas, os insectos tudo parecia estar a mil, aumentado, atormentadoramente vívido e presente! Bem, não aconteceu nada, e lá fomos dormir para a tenda enrroscados que nem uns techugos. De cansados, nem foi difícil ignorar tal evento, tão medonho e insólito. Um dragão ou lá o que teria sido, gritando, no meio da noite, num vale recôndito enquanto dois humanos desciam a pé com uma luzinha elétrica nas mãos... No dia seguinte, liga-nos o Filipe de manhã, com tom de caso, dizendo: “camarada, o carro da Irene suicidou-se”. Era um Volvo que, embora tivesse servido a dona muito bem, durante muitos anos, já estava a dar de si, e a ameaçar parar numa qualquer estrada, num dia qualquer, por uma razão qualquer, e aí ficar, sem dar explicações a ninguém. Mas ninguém imaginaria que o fim fosse tão dramático. O frio da noite forçara os travões dilatados pela descida cautelosa a cencolherem-se; a diminuírem de volume, pouco a pouco, tanto tanto, que foi o suficiente até o senhor volvo deslizar sorrateiramente pela rocha a baixo até ir apenas parar de focinho pregado num grande penedo, setenta metros abaixo… Nunca nos teria ocorrido, por sermos parvos ou por estarmos estafados de termos sido afincados levadeiros de sol a sol, que aquela guincharia da noite passada fora, na verdade, o carro da mãe da Sara, abicando-se da cocha a baixo... Fora o trauma, tal insólito evento não poderia ter sido o melhor cartão de visitas. No dia seguinte, tínhamos dez pessoas da aldeia mais próxima (Eiró) a ajudarem-nos a retirar aquele monte de sucata do monte. O reboque, com toda a oficialidade que lhe confere o protocolo normal, neste caso, não ajudou nem um pouco. Ao averiguar a gravidade da situação, de cima, da estrada, o reboqueiro só nos desejou boa sorte, ou com a multa que teríamos de pagar se deixássemos o carro ali, ou com o preço do helicóptero… e foi-se embora. Quem nos salvou o dia? As pessoas de Eiró. Engenhosos e generosos, arranjaram dois tratores, um puxando o outro, com calhas de andaimes e mais umas parafernálias para deixar o serviço pronto em condições. Que prontidão, que distreza! Tudo se despachou numas meras horas, e houve muita conversa, ainda que às vezes embebida de nervos miúdinhos pelo meio. Depois da loucura do carro, e de ter ficado a Irene a esconjurar males à Landra durante uns tempos, vieram, desta vez de Londres, a Mariana e o seu namorado Sam. O Sam, como grande cheff que é, perguntou-nos logo: “onde é que cozinham?” seguindo com "o que é que vamos preparar hoje?". Nós ainda não cozinhávamos… Comíamos, ou a comida pré-cozida que trazíamos do Porto, ou coisas cruas e pronto. O choque que foi, a ausência de fogo para um cheff bem educado... Em minutos, montou um fogareiro de pedras e telhas velhas e preparou-nos um arroz de tomate malandro com pimentos padron. Que maravilha! Na landra já havia água corrente (ainda que no chão) e já se cozinhava (ainda que na chama viva, e ficassem algumas crostas, um pouco esturricadas de mais, mas era o gosto do momento!) ler sobre: Como se pariu um carvalhal
Esteve-se em Londres tempo que baste. Bastou, enfim, e cá viemos bater a Cabeceiras de Basto. Nem sabíamos da terra, nem do seu nome. Um salto no escuro, portanto. Como dar aquela queca que, a bem ou a mal, lá nos conduz a andar, nove meses adiante, com um certo macaquinho às costas. É desde Julho do mítico ano de 2020 [imagine-se a tatuagem na anca de uma qualquer senhora avantajada: “CORONA MMXX”] que estamos cá, no Carvalhal. É isso mesmo! O nosso terreno tem nome e, como muitos outros carvalhais por este mundo fora, o nosso também tem outras coisas para além de carvalhos a dar com um pau. Quando chegámos, tudo era mágico. Só faltavam os faunos do jardim e as bruxas do pomar. Atenção, que ainda tudo tem o seu charme; o seu toque onírico, neste ou naquele momento, quando a luz passa assim ou assado pela neblina matinal, ou quando nos cumprimentam os arbustos do costume com as suas novas flores. No entanto, já não ficamos completamente obfuscados com toda e mais alguma coisa; extasiados, incapazes de fazer, com lógica, duas coisas conseguintes. Quando chegámos, deambulava-se todo o dia, curiosamente acampando nos sítios mais estranhos. Nem vinte mil mapas de cotas nem imagens do Google Earth alguma vez nos valeriam estes pequenos rodopios - docemente cortantes - pelas giestas, tojos, e codessos, que se haviam bem instalado no passar de trinta anos des-humanizantes. Foi como esperar que um pequeno nasça. Há todo o atafulho tecnológico, que nos faz mirar processo adentro - são as ecografias, os testes hormonais, as apalpações e tudo e tudo - mas nada substitui, como é óbvio, o ato esgazeado de vermos um bicho daqueles nascer e a comportar-se que nem um extra terrestre, digno de pedestal num qualquer museu em Novo México. Tínhamos mapas de floração, mapas de elevação, mapas de água, mapas bioclimáticos, índices ombrotérmicos, mapas geológicos, estudos da fauna e da flora da região… Encenámos a nossa aterragem, coreograficamente, como se faz em teatro barroco. Chegar ao Carvalhal, porém, foi uma outra arte; encontrar a casa de pedra - escondida no meio do mato - outra tanta missão. Essa é a realidade das coisas. Nada nos prepara para o momento, aquele que é sempre presente, em que tudo é, tudo acontece, e é sempre tão melhor. Mas ainda nos são valentes os mapas! Vamos lá ver. Com eles, pode viver-se, com uma profundidade acrescida, aquilo que vai acontecendo mais do que aquilo que é ou aquilo que está. Ainda que com o aparelhinho intuitivo sempre ligado, sabemos melhor quando esperar ou quando (e como) agir. Esperamos pelas borboletas amarelas de fevereiro; pelos os morcegos, pelas infinitas aranhas e pelas primeiras lagartixas e osgas primaveris; ou sabemos quando deixar que uma certa brisa orográfica desça sorrateiramente pela montanha, e que, a uma dada hora, numa certa altura quente ano, regue, condensando-se como se nada fosse, as mais rasteiras das plantas… No entanto, nem para fotografar a gente pára, quando (não tão raras) são as vezes em que o momento - aquele presente - é digno de pintura. |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
All
Histórico
May 2024
|