diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Reencarnação diplomática
No início do mês, vieram-nos visitar o João Costa e a Lena. Com eles vieram também o Telmo a Joana e o Gipsy. Montámos o estaminé na nossa eira e fizemos aquela típica patuscada à portuguesa com sandes de bifana e tudo. A pequena diferença é que era tudo vegan! Quer dizer, o Rodrigo tinha-se esquecido deste pequeno detalhe e, no dia anterior, adicionou - num gesto improvisado - uma rodelinha de chouriça de sangue ao arroz, só para dar sabor… Muita conversa da boa dilui, sem problemas, uma bronca destas. Foi um dia bem passado, portanto, passeando pelo terreno e fazendo, em conjunto, alguns trabalhos circunstanciais. Por exemplo, uma das levadas principais estava a perder alguma água. Reparámo-la em minutos, e ainda houve tempo para todos conhecerem a Dona Leonor, que andava pelo caminho à procura de um dos seus cavalos, que tinha fugido caminho a Cambeses… É sempre para lá que ele vai quando escapa... Falando de água, foi só ao fim de dez meses, que encontrámos a nascente que faltava. Viva! A água andava perdida, escapando por entre pequenas fissuras e rachas, que há por todo o lado no emaranhado rochoso destas serras. Nos últimos tempos, tem deslizado, todinha, monte abaixo, inevitavelmente acabando por ir bater ao rio, sem que antes servisse à Landra uma gota que fosse. Nesta altura do ano, os dias, cada vez mais longos, trazem consigo, não raras as vezes, aquele sol alto e reto que, com uma eminente força tórrida, pré-estival, já ameaça algumas ervas com uma sede imposta. Para toda a nossa conveniência, descobriu-se que, ao longo de todo o caminho que nos leva até casa, corre, paralelamente, uma levada, já muito antiga, feita em pedras do tamanho daquelas que só uma comunidade inteira conseguiu mexer, e colocar no sítio! Estava completamente coberta com silvado, giestas, tojos e algumas árvores de água (ulmeiros, amieiros, salgueiros, cerdeiras, frângulas, rhamnus, e umas macieiras bravas aqui e alí). Com alguma pena, tivemos de desbravar caminho - passo a passo, palmo a palmo - até dar de caras com as muralhas espessas de um açude - com muitos anos também - que recolhe e que guia a água de outras três nascentes. É essa a água que teremos nas torneiras não tarda nada, mas para já, há que desenrolar, conectar e enterrar quatrocentos metros de tubo… De piqueiretas e pás na mão, o trabalho cá vai andando. O que também nos está mesmo à mão (ou melhor: aos pés) são as nossas bicicletas! Com elas, temos ido regularmente (uma vez por semana) à vila. Damos sempre um pulo ao mercado para ir buscar o que - ainda! - não produzimos, e passamos algum tempo, por volta do almoço, no Café Cabeceirense - dos animados irmãos João e Francisco - para usar um bocadinho da sua internet. Os afazeres administrativos ainda nos perseguem (e preenchem) as segundas-feiras que, por acaso, também são os dias em que damos aulas de música online aos filhos de colegas e amigos, uns em Portugal; outros em no estrangeiro. Relacionamentos digitais à parte, também temos vindo a conhecer mais e mais feirantes locais, cada um com as suas produções caseiras, seja de enchidos, de padaria e pastelaria, de fruta e hortaliças ou mesmo de ferramentas manuais, com quem já temos alguma confiança para inspirar uns descontos jeitosos aqui e alí. Costumamos frequentar a banca do Carlos e da Karina que só têm produtos biológicos de alta qualidade. Pedem-nos sempre que sejamos rijos e críticos com as coisas que nos passam para as mãos e que, eventualmente, meteremos na boca... Querem que lhes digamos honestamente sempre que alguma coisa não estiver em condições. Até agora não há razões de queixa! Venderam-nos um limoeiro bravo - propagado por alporquia - que conseguiu chegar à primavera triunfante, após um inverno particularmente rigoroso. Tem sido uma missão complicada, esta de se encontrar limoeiros à venda… Aparentemente andam todos com uma doença qualquer que lhes rebenta as folhas todas; uma verdadeira desgraça. Porém, nunca vimos, com os nossos próprios olhos, a tal doença nas nossas laranjeiras, mas a verdade é que em nenhum horto se vê limoeiros à venda; e todos dizem com ar de caso “estão proibidos!”. Devemos ter comprado um limoeiro ilegal - um bandido, portanto - rijo mas honrado pela sua avidez e sagacidade; por ter não só suportado as geadas deste tão maldito ano, mas por ter aguentado, nos braços, um belo limãozinho, como se faz com um bebé no meio de um naufrágio. Agora já tem muitas raízes e vive feliz no patamar das laranjeiras! Antes de falarmos de outros feirantes, há que dizer que a razão pela qual o Carlos e a Karina decidiram praticar agricultura biológica está relacionada com o seu filho, quem tem leucemia. As circunstâncias da vida propuseram-lhes um cuidado mais atento a tudo o que lhes entra pelo corpo adentro. Às segundas, no mercado, está lá sempre a senhora Conceição, enfiada debaixo de um consorte de panos (para proteger a mercadoria do sol direto). Aqueles lençóis todos dão, de facto, um ar de tenda cigana a tudo aquilo e, como ficam mesmo muito baixos, detraem alguns compradores de se aproximarem o suficiente para perceberem o que é que deveras lá se vende. Lá por baixo, a senhora vende as magníficas broas de centeio e de milho, que faz à moda antiga. Pesam no mínimo um quilo e tal cada e crescem com fermento natural: “uma bolinha do próprio miolo basta” diz ela, e acrescenta “mas tem de se deixar durante duas noites pelo menos!”. Quem diria que, após ter passado por um inferno de quase trezentos graus, a massa no interior do pão continuaria viva! Essa é uma forma de se manter o fermento de um pão para o outro sem termos de andar sempre com aquele frasco explosivo de massa-mãe atrás. À parte da porporção, que tem de ser enorme, para que isto funcione, não é forma melhor nem pior, é diferente. Assim são as broas do norte. No mercado também há a senhora Fernanda, de Chacim, que tem os melhores enchidos da zona. Também tem mel, mais ao cuidado do marido, mas os enchidos é que lhe verificam e reinscrevem semanalmente a fama. É ela quem os prepara, do início ao fim, todos em casa, com animais seus, sem certificados nem nada, e corre sempre bem! Já nos convidou várias vezes a passarmos lá um dia, quando quisermos, para aprendermos como se faz. Assim o faremos com muito gosto, quando a altura vier. Ir a Chacim, ainda que razoavelmente próximo daqui, ainda é uma excursão que se tem de planear com cabeça. Numa destas vezes, o Rodrigo meteu conversa com ela, mas não foi sobre enchidos, nem sobre mel. Foi em torno do assunto da lã, que a conversa magnetizou um pequeno grupo de senhoras de idade e de outros quantos feirantes. Agora, que é época de tosquias, temos passado mais vezes por Eiró para ver quem terá lã para nos dar. A primeira quantidade foi-nos oferecida pela Nela e pela sua família. Vivem todos numa grande casa - rosa forte, garrido - junto à estrada nacional que vai daqui para para os lados de Monte-Alegre. Têm umas vinte e cinco ovelhas nuns campos aqui perto, e foi de bom grado que nos quiseram passar dez sacas cheíssimas de lã para as mãos, e para as costas! Para eles, tem sido um fardo acrescido, ter de arder toda aquela fibra infindável, após as tosquias. É isso que fazem com a lã, e não é só a Nela e as outras pessoas daqui que o fazem, é mesmo em todo o país (e provavelmente além) que isto se passa. Ardem-na toda como quem arde notas de cinquenta. A lã perdeu o seu valor nos mercados - isso é um facto - mas nada invalida, nem abate, o verdadeiro valor económico, tecnológico e cultural que ainda tem e sempre terá. A Ana - filha da Nela - ajudou-nos a carregar as dez valentes sacas de lã às costas e fitou-nos a descer, que nem burros de carga, pelo caminho, não sem alguma incredulidade. Estarmos interessados em lã é uma coisa; não termos um veículo com tração às quatro rodas para dar cabo destes trabalhos já é outra. As duas coisas juntas já são dignas de uma certa estranheza. Contudo, no final de contas, todos gostam da nossa intenção de valorizar o que é local e, por isso, apoiam-nos alegres nas nossas aventuras. Foi a primeira vez que sentimos a lã pura na pele. Não foram os poucos cagalhões secos, encrostados e perdidos naquelas nuvens fibrosas, nem foi arranharmo-nos com as hastes de cardos e de tojos secos que nos impressionaram. Foi toda aquela oleosidade, e o cheiro, tão cheio de caráter! Voltavam a arder as feridas e os cortes das mãos e dos braços, o que não sabemos se é bom se é ou mau, mas sabemos que é valiosa - essa mesma oleosidade natural - na resistência deste material contra o fogo, face à agua, e às famosas traças! Vamos ter de a lavar e cardar com cuidado, não vá a lá ficar tratada de mais, como a que se vende por aí, completamente intoxicada de borax e de outras coisas menos naturais e bem piores… Quem nos ensinou isto tudo, foi o artista Mikhail Karikis, que agora vive em Portugal, mas que é grego, e o seu pai era pastor, lá nas montanhas Gregas, bem a norte. Ser pastor, naquela altura, naquela região, envolvia ter de dormir, por vezes, nas copas das árvores para se proteger dos lobos. Ele lá sabia das suas matérias lanzudas. Hoje, aprendemos nós o que podemos, com o conhecimento de causa dos outros. É por isso que metemos conversa fiada com as pessoas (nem sempre as mais “antigas”) que suspeitamos ainda serem detentores de um segredo qualquer da história. Vamos perguntando e puxando por mais e mais detalhes de tudo aquilo que não conhecemos. Assim, vamos reinventando, pelas nossas próprias mãos, toda uma tradição que se perde se não for praticada, seguida e refeita, sempre de novo. Num museu, tudo é para morrer cristalizado em memória de um passado qualquer. Até as coisas mortas, se formos ver bem o que se passa, não estão mortas de facto. Estão somente à espera de viverem outra vez. Os cadáveres dos animais mortos também se decompõem, e toda aquela matéria orgânica passa a integrar os corpos de outras coisas vivas. Reincorporar-se-ão mais uma vez na rede da vida. Se não for agora, será um dia, por certo. Cá está a reencarnação, tão honesta e aberta para todos os céticos, que são incapazes de imaginações mais interessantes do que aquelas as da engenharia moderna. Nesta matéria - numa corda sensível entre a engenharia e a encarnação - temos-nos vindo a aperceber de uma realidade muito peculiar, e um tanto quando sórdida, que se passa nos nossos terrenos. Hoje, cada vez menos, os animais morrem nas terras onde viveram. Isto não é, nem de perto, falar das condições de vida desses mesmos animais. Muitos nem viram nem pisaram terra de todo! Essa será outra conversa. De qualquer forma, os animais, para que morram de forma legal, são retirados para sítios de abate; instituições da morte organizada. Pouca gente terá imaginado, na altura em que as “boas ideias” foram tidas sobre aumentar a produção de carne ao mesmo tempo que se melhorariam as condições sanitárias desta indústria (pouca importância se dá à subjetividade do animal em sí), que um resultado direto desta tramóia toda seria começarmos a notar carências misteriosas de fosfato de cálcio nos nossos solos… A boa floração e frutificação das nossas plantas, assim como a produção de sementes de qualidade dependem tremendamente da disponibilidade destes nutrientes na terra. Quando, para "resolver" este problema, se começa a enfiar fertilizantes sintéticos (ou mesmo dos inorgânicos, naturais, extraídos mecanicamente) pela terra a dentro, então aí é que estamos a entrar de cabeça num valente berbicacho. Aqui na Landra, ainda não temos animais de porte considerável, nem os teremos durante alguns anos, mas sabemos que é importante a presença animal - especialmente de mamíferos herbívoros - por perto, se quisermos que a nossa terra seja saudável da forma o mais natural possível. Isto não se restringe ao estrume que as vaquinhas e os cavalos deixam por todo o lado, adubando os solos. Estamos mesmo a falar de vectores de polinização, mas também de animais mortos; restos de carcaças, de ossos, de cartilhagens e tutanos, afundando-se pelos solos no canto dos tempos. Seguindo as práticas de agricultura natural coreana, sabemos o que fazer para remediar a situação a curto prazo e, por isso, num dia destes, o Rodrigo foi a um talho local pedir que nos dessem todos os restos que não fossem utilizar para mais nada. O que fazemos com eles? Partimo-los aos pedacinhos, mandamo-los, no fim do jantar, para dentro da salamandra em brasas e fica tudo carbonizado; "PALEOBLACK: PRETO MAIS PRETO NÃO HÁ!!!" De seguida, é só diluir tudo em vinagres ou outros ácidos orgânicos, durante umas semanas e voilà! Pronto a utilizar nas regas, diluído de um para mil! Estes animais, que não comemos, acabarão por ser a razão pela qual as nossas laranjas serão tão doces, e as nossas nozes não apodrecerão antes do tempo com uma casca rachada por falta de cálcio. De forma semelhante, todas as nossas cucurbitas (família das abóboras, courgettes, melancias, melões etc.) estão a crescer com uma ajuda extra de compostos líquidos feitos com base nos corpos esmagados e fermentados das briónias (Bryonia dioica: um tipo expontâneo e extremamente vigoroso de cucurbita). Uma coisa que não podemos comer em demasia - por ser um tanto quanto venenosa e, por dar, sinceramente, frutos demasiado pequenos para que a maior parte de nós os conheça de todo - acaba por ser a rampa de lançamento para as nossas deliciosas e nutritivas abóboras. Agradecemos a toda a vida que acaba por ser a nossa - ou melhor - que continua, antes de ser outra, sendo-nos. Entretanto, este ano tem sido cheio de convites e de propostas vindas daquele lado do mundo em que a cultura é mais objeto do que processo; ou pior, mais o culto dos fazedores do que da coisa que se faz. Amarguras artísticas de lado, estes convites são, obviamente bem vindos, especialmente quando nos pagam decentemente (ou quase) pelo trabalho que fazemos. Desta vez, várias pessoas e instituições - simultaneamente mas independentemente - chamaram pela Sara; que nos presenteasse com trabalhos artísticos - novos, mas também antigos, refeitos - em vários momentos e ocasiões deste ano. E pronto, com a múltipla responsabilidade depositada sobre os seus ombros, lá foi a Sara trabalhar para o Porto pois, na Landra, ainda não há condições para a produção de arte contemporânea com uma forte componente de trabalho digital… Ficou o Rodrigo a servir de caseiro e a avançar trabalhos variados. Num domingo, levantou-se cedo que baste para ir levar algumas azeitonas à Dona Sameiro, em Eiró. Tínhamos lá ido os dois, em Fevereiro, quando estávamos muito desanimados com a história dos caçadores; aqueles que, sem permissão, nos entravam pelo terreno adentro para ir aos javalis e, no processo, nos cortavam recorrentemente as vedações, postas precisamente para manter os javalis, mas também os cavalos do lado de fora… Já sem ideias do que fazer quanto àquela situação tramada - o inverno a apertar-nos o humor contra as paredes do fundo - subimos a Eiró para falar com alguém, com quem quer que fosse para - como nos disse o José Oliveira - fazermos política popular na ágora local. A nossa relação diplomática com os habitantes locais já conta com alguns grossos sucessos. Em troca de lã, de informação e de mais contactos, sempre vamos oferecendo azeitonas (aquelas com uma cura especial coreana) e café de bolota (que não é, mas que sempre é recebido como se fosse coisa nova, um conceito inovador!). Dessa vez, por ser domingo, o filho desta senhora estavam em casa. Chama-se José Manuel e é professor de engenharia industrial no Instituto Superior de Engenharia do Porto. O José nunca viveu noutro sítio que não fosse em Eiró. Nem duas horas dentro de um carro para lá e para cá, nas já muitas vezes batidas estradas, o fazem mudar de ideias. Ninguém diria, mas aqui mesmo nesta aldeia - em que não vivem mais de trinta pessoas - o José tem todo um estúdio de máquinas e robôs que produzem mais máquinas e mais robôs, para além de simples peças para os seus alunos, quando o ISEP não tem capacidade de as fabricar, ou mesmo quando as empresas em que esses mesmo alunos estagiam também não conseguem fazer aquilo que deveriam. Consegue-se aqui em Eiró; a inesperada ponta de lança do design industrial Português. Com Maio pelos fins, são mais frequentes os calores e, o trabalho, quando pede mais força, também pede mais água. Assim se lavam e refrescam os rostos suados, salgados e peguentos. Mas nem sempre a água resolve tudo. Num dia, esteve tanto sol, tanto calor, que Maio parecia Junho. O Rodrigo, sozinho no campo, a trabalhar a duzentos à hora, começou a ofegar tanto, com rios nojentos de poeira e sal a descerem-lhe pela nuca abaixo, que decidiu de rompante que iria desbastar a sua própria lã. Com que então, estamos na altura das tosquias. Fê-lo sozinho, e foi mesmo sem ver nada, pois não há espelhos na Landra (e estava de noite). O estilo é o táctil e é o do arejamento funcional. É o que for, se servir para o que serve. Na natureza, só quando a água está parada, desoxigenando-se lentamente, é que podemos dar uma de Narciso. A gadelha, entretanto, não foi ao fogo, foi parar ao composto, sendo que não tem a mesma qualidade da lã de ovelha e, por isso, não servirá de grande coisa para fabricar feltro bruto para isolar o interior da nossa casa.
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ler sobre: As durezas do inverno
Dizem-nos que este ano é que foi; que foi o pior, o mais frio, o mais austero. Nunca mais passavam as chuvas e havia dias em que se vivia de noite. Quando a luz nos tocava as peles, a névoa, permanente, lembráva-nos de que nada era seco. Não que tudo isto seja mentira, ou que seja, de todo, irrelevante constatarem-se alguns dos mais opressivos factos da vida nortenha, mas este passar por Janeiro tem-nos pesado mais do lado social das coisas, do que do lado em que nos confrontamos com as expressões invernais desta recalcante altura do ano. Lavar o corpo com a água do rio - postos três graus negativos - tem-nos sabido inigualavelmente bem. Ir dormir bem antes de se terem apercebido as cidades de que o sol já la se foi, frescos e reverberantes das partes todas do corpo, é trabalho só do inverno. Esta pulsação, insistente, do sangue quente, a ferver-nos o ar em roda um do outro é, estranhamente, um bem inexplicável da vida escura das seis e meia da tarde (que é noite). Acabado um dia de trabalho físico, corporalmente árduo e extenuante, a mística das névoas pálidas, deslizando vale abaixo, oferece a todas as coisas uma alma maior, um qualquer mistério, sempre vivo, assustadoramente arregalado, ainda que convidativo. A Helena - mãe do Rodrigo - quando a temperatura desce da marca certíssima dos dezasseis graus, grita sem falta: “ai que me vão rachar os ossos!!!”. Isto é na Ilha da Madeira, que fica na Placa Africana. Por isso, pensou que tínhamos morrido congelados, por não lhe termos retribuído uma chamada perdida, num destes dias, em que tentávamos poupar cada pinga da bateria dos nossos telemóveis, a ver se conseguíamos enxergar as coisas que comíamos no escuro do granito serrado. Estamos a ficar numa tenda, pequenina, dentro de uma casa de pedra, a medir cinco de cada lado, e que já serviu de abrigo para as vacas que pastavam cá no Carvalhal. Agora, é a nossa casa e, ainda que provisoriamente, nos poucos tempos que passaram, aprendemos a gostar muito dela. Embora esteja pessimamente construída, e corra um ar gelado por entre as duas portas (às quais lhes faltam metade das tábuas), esta é a nossa casa. É onde dormimos, onde cozinhamos, onde nos vestimos e despimos todos os dias, e onde o Rodrigo anda descalço, ainda que se vejam mais aranhas que palha. Por baixo da tenda, a palha é o que nos separa os ossos das rochas. O chão é a rocha viva da montanha, que foi picada - mas não demasiado - para aparentar ter a forma plana de um chão. Plano o suficiente, ter-nos-á este chão, até nos mudarmos para a casa maior, aqui ao lado, e que começaremos por recuperar - primeiro o telhado, depois o soalho - aos poucos, aos pouquinhos… Este Janeiro tem-nos pesado de forma diferente. As pessoas dizem-nos que este ano está a ser um pesadelo; porque chove, porque está frio; "o chão gelou!" e "o bicho anda aí!". Cá por nós, vêmo-nos embrenhados numa torrente agridoce de situações particularmente desagradáveis, que têm especialmente que ver com o mundo dos humanos e as suas complexidades. Primeiro, roubaram-nos uns trinta quilos de azeitonas. Após a apanha, tínhamo-las deixado de molho no rio, com fé em voltar a vê-las - desamargadas - prontas para entrar na salmoura especial que o Rodrigo faz com uma receita coreana. Azeitonas à vista? cá nada! A azenha e as rochas, todo aquele musgo, nem uma palavra. A Dona Leonor lá nos explicou algumas das regras locais que regem o acesso ao rio (e a todas as coisas que lá se encontram). Vai-se a ver, e tudo o que está nas orlas do rio é de todos - simples, e sem exceções - o que inclúi sacos de azeitonas de molho, claramente deixadas por alguém que as apanhara... Ficámos a saber que, um pouco mais acima, no nosso terreno, passa um "corgo" - um pequeno curso de água, com alguma força, vá... - que ninguém visita, a não ser a própria Dona Leonor, e um rapaz de Eiró, que anda sempre por aí à procura de ouro, com o seu detetor de metais. De vez em quando, quando encontra uns centavos, oferece-os prontamente às pessoas. Há que dizer que nem todas as azeitonas se perderam! Calma... estas foram as que nos fizeram deixar de as voltar a pôr de molho no rio. Antes destas, a nossa confiança era só toda e plena, pois era o que tinhamos andado a fazer, com sucesso, desde o início das apanhas. Muitas estão já que se provam, ainda gasosas, mas bem deliciosas, a sair dos potes de vidro que nem bombons! Ai ai que estranhas maravilhas, as azeitonas... Oliveiras e seus frutos de parte, os cavalos da Leonor não nos têm dado grande descanso... Antes de termos vindo para cá, estes quatro garranos arraçados foram deixados a ambientarem-se - diga-se de passagem - àquele que é o terreno mais fixe de Riodouro. Claro está, por ser um deslumbre cá na zona, os cavalos - bem sabidos das coisas da vida - decidiram que esta seria a sua nova casa. Têm água, têm comida, até casa têm. Casa mesmo, sim... Os cavalos encontraram uma forma de entrar na casa (que os humanos tinham construido e, há mais de trinta anos, abandonado) e viviam lá dentro. Cagaram o chão todo, e deixaram tudo num estado... natural... Uma certa parte de nós delicia-se com estes quatro belos seres a correrem livres por aí. Uma certa outra parte faz contas à vida, ao ver massacradas, por vezes até mortas (por simples e curiosas dentadas), as árvores que temos vindo a plantar. [Em várias culturas orientais, nomeadamente a chinesa e a japonesa, o número quatro é símbolo de azar, de má fortuna profunda. "Yon" ou "Shi", quer inclusivamente até dizer morte...] Indisciplinados, corajosos, ou masoquistas, os cavalos não se acanham à vista do famoso fio laranja - tipicamente eletrificado - que supostamente deve meter o devido respeito em toda essa bicharada. Passados dias a ponderar sobre começar (ou não) a fechar o terreno, decidimos que, para já, teríamos mesmo de tomar algumas medidas, mas não daquelas drásticas, apenas das suaves, daquelas flexíveis e graduais... Começámos por desenhar e instalar setenta e cinco metros de vedação de aço na zona norte do terreno, que dá para o caminho velho de Eiró. Depois, encetámos um plano de escorraçamento dos bichos, coitados. Após duas tentativas falhadas, em que aquelas patas galopantes nos fintavam que era uma alegria, a correr que nem o senhor cabeludo do Brave Heart, lá conseguimos enxutar os cavalos para fora dos nossos confins. Com isso, fechou-se, num abrir e fechar de olhos, o último pedacinho de vedação e pronto! Era uma vez os cavalitos. Aquela semana de lama e arames, os cortes nas mãos e a pele talhada, o trabalho à chuva e aquelas húmidas capas (supostamente impermeáveis)... tudo nos serviu, enfim, encerrados. A verdade é que não passou uma semana, e a vedação tinha sido cortada numa certa parte, de cima a baixo, durante a noite, por caçadores. Não só entraram os caçadores, a ver se interpolavam a hora de jantar dos escarafunchantes javalís, como voltaram a entrar para o lado de dentro o raio dos cavalos. Estava o terreno a ser ocupado, de novo, por tudo e por todos, de todas as maneiras, como se de um campo multi-usos se tratasse... Entretanto, evitámos entrar em guerra e já conversámos com os vizinhos sobre estas situações; aprendemos algumas manhas locais e começámos a trabalhar de uma forma um pouco mais engenhosa. É que essa é a realidade. O Carvalhal é, de facto, um campo multi-usos. Sempre foi, sempre será, e é assim que deve ser. Tudo o que é preciso, é um pouco de regra; um nadinha de articulação, e muita diplomacia entre os humanos... Vieram os sinais de não caça; vieram mais uns metros de vedações, que utilizamos para proteger pequenas hortas aqui e ali; combinámos com a Leonor termos os cavalos nuns terrenos mais acima, longe da perdição que é, para eles, enfiarem-se os quatro no Carvalhal; e já não deixamos nada de molho no rio de baixo. Assim se vai aprendendo as manhas do sítio e, acima de tudo, assim vamos dando sinais claros e cordiais da nossa presença a todos os que já frequentavam este lugar antes de nós. Entretanto, o sol cá vai voltando, aos poucos, e aparecem dezenas de plantas comestíveis - comida gratuita, portanto - por todos os cantos! A primavera vem aí... |
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Sara Rodrigues Categorias
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October 2024
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