diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Viagens e visitas
Este mês entrou-nos pela porta, de rajada, com uma data de visitas inesperadas; todas de Inglaterra, quase em modo de contra-blitz. O blitz, neste caso, não fora uma forte chuvada de bombas alemães, mas sim um pequeno virus que, ao precipitar, de leve, sobre vidas das pessoas, deixou mais moças do que se tivessem chovido vacas barrosãs. O sufoco já era bastante - e crescente - naquela não tão grande bretanha. O cocktail mais tóxico já lhes subia pela cintura; dali a nada dava-lhes pelo pescoço, a demolhar as orelhas daqueles que fossem mais baixotes. O “Brexitona”, também conhecido por “Coronexit”, não tem álcool, mas induz ao álcool; de formas tais que, na viragem dos dias - cada vez mais os mesmos, só que mais esturricados de cada um dos lados - ao primeiro sinal de se ouvir um trinco de porta a roçar para que se visse a luz do outro lado, quem pôde, correu pela vida em direção ao aeroporto mais próximo. Já quem não dispõe de tal privilégio, ficou a nadar onde tudo ainda mais se afunda. Pois é. Esta inóspita mistela de “sensações” - assim se referem alguns barmen finos às bebidas que misturam - tem efeitos secundários mais que dolorosos, ainda que localmente anestésicos. Como não temos televisão, e nem por hábito lemos informação de má qualidade em jornais mais ou menos subsidiados, soubemos por amigos e familiares que havia toda uma fuga britânica, e que nos bateria, brevemente, em maneira de onda pseudo-migratória. Ainda que com “brits abroad gone mad” estampado na testa, houve quem, com muita avidez, conseguisse resistir aos fáceis deslizes que facilmente acabam nos calores venenosos do Algarve. Na primeira fornada dos bons sobreviventes ao turismo de massas, vieram os nossos amigos Lucy & Dimitri. Visitaram-nos assim que puderam. Primeiro, passaram uns dias no Porto, e ainda dariam uns pulos por outras terras nortenhas, para reaver outros amigos que, entretanto, já se tinham escapulido, com gosto, das terras de nossa senhora dona rainha mãe. Gostaram tanto da experiência, que já estão à procura de um terreno lá para o meio da Inglaterra! Derretemo-nos de contentamento com a consciência de que a nossa influência, que pode ser vagarosa, é, no entanto, bem certeira. Sabemos que, um a um, vamos incentivando as pessoas - primeiro os amigos, depois os amigos deles - a mudarem de vida. E assim se faz uma revolução. O Dimitry é cowboy aos fins de semana. Isto é, lá em Kent, algures no meio de carvalhais e prados bem ingleses, há uma vila chamada Loredo [deve ler-se com um sotaque norte-americano de travo desértico]. Todas as sextas-feiras, há um bando de gente que sai dos seus trabalhos normais - muitas vezes bem compensados monetariamente pelo stress que exigem no centro de Londres - e que pega nos seus carros a motor - alguns dos quais já elétricos - para se dirigirem a Loredo [olha o sotaque!]. Aí, param as suas viaturas modernas num descampado, trocam de roupa mesmo dentro do automóvel - vestem linhos, cabedais, feltros e lãs mais brutas - e, só então, já desligados e escondidos os telemóveis, põem-se a caminhar, por veredas rurais até chegarem à civilização vitoriana, que animarão durante todo o fim de semana. No saloon - espaço comunitário típico de qualquer western que se preze - acendem as lamparinas a petróleo, começam os cozinhados em grandes panelões de ferro fundido, sacam das armas para as limparem de qualquer poeira ou ferrugem que se tenha acumulado desde a húmida semana passada, e vão-se lembrando das velhas musiquinhas fronteiriças via oeste. Um dia, quem sabe, chegarão à Califórnia, sem ter que chacinar demasiados povos indígenas. Na Landra, nos dias que correm, em vez de armas de fogo, temos um arco de teixo inglês [uns passos atrás, portanto] mas, em vez de lamparinas, temos uma luz LED recarregável com um pequenino painel solar [supostamente uns passos adiante]. Não se pode dizer, portanto, que estejamos num só tempo. Principalmente quando nos vêm visitar cowboys do século XIX (que nos terão alcançado por meio de transportes aéreos compostos por toneladas de metal, propulsionadas pela energia concentradíssima de restos mortais de animais e de plantas bem curtidas). Foi bom tê-los por cá uns dias pois, assim, sempre tivemos o pretexto de irmos conhecer as redondezas a pé, o que, sozinhos, não teríamos feito. Já nos tinham falado mil vezes de uma tal barragem que há aqui perto; que é gira, que é fantástica, que vale muito a pena ir lá nadar e passar um bela tarde. É uma estrutura artificial, montada para aparar a água de duas nascentes da Serra da Cabreira, e para tê-la à mão de semear para apagar fogos, caso estes apareçam misteriosamente nos terrenos florestais… Fomos lá e gostámos muito da experiência, embora a artificialidade ainda nos tenha causado um certo desconforto. Os carvalhos, aceres e pinheiros estão todos plantados com espaçamentos ridículos, supostamente para dar aquela sensação de parque de merendas, algo mais convidativo para famílias do que um bosque cerrado no meio do monte... Após se terem ido embora o Dimitri e a Lucy, nem passavam dois dias e já nos chegava a Roxanna à estação de autocarros de Cabeceiras. A Roxie é nossa amiga e colega no grupo de música contemporânea que mantemos em conjunto, o New Maker Ensemble. Também vinha pisgada de Londres assim que fora possível. É violoncelista do melhor que há e, hoje em dia, anda particularmente interessada em excavar afincadamente as suas próprias raízes iranianas. Não ficou muito tempo e, talvez por isso, a intensidade foi tanta, que estava que não se aguentava com as emoções, de tanta coisa que lhe mostrávamos e que a púnhamos a fazer, incluíndo acartar às costas e à cabeça umas boas sacas de lã cheia de cagalhões e mato... As saudades também já apertavam, pois havia uma data de meses - já a fazer anos, na verdade - que não nos víamos! Ao contrário dos cowboys, que estavam mais num registo de férias de barriga para o ar, a Roxie cá nos ajudou a fazer um montão de tarefas práticas. Estamos habituados a trabalhar com ela, seja em música ou no que for. Desta vez, foi no campo: plantámos montes de feijões e de cucurbitas (courgetes, abóboras, melões, melancias e primos afastados); cavámos mais um bocado de umas valas de dispersão e - talvez a melhor proeza de todas - reabrimos a velha levada que trazia água de uma nascente a mais de trezentos metros de distância até à casa! Até este momento, a casa tem vivido de pedras vivas, numa secura infindável. Só entrava água nesta casa quando chovia, e os buracos na cobertura desempenhavam bem a sua função, deteriorando tudo um pouquinho mais. Isso agora vai acabar. Daqui a nada, a cobertura refazer-se-á, e a água que se verá saindo por torneiras, cá dentro, virá, agora mais controlada, descendo graciosamente pelos caminhos reabertos. Levou um dia inteiro esta proeza. Ia o Rodrigo, na frente, com a sua catana a desbravar mato grosso; logo de seguia, a Sara, com um grande podão a aparar tudo um pouco além das primeiras linhas de corte e, por fim, a Roxie, aprumando os fetos e as silvas e retirando os ainda grados galhos esquecidos do meio do caminho. Assim, marcou uma grande nossa amiga, com a sua chegada, a chegada da água à nossa casa. Desta não nos esqueceremos. As despedidas são sempre uma chatice. As pessoas ficam tristes e caladas, cabisbaixas nas horas que nos levam àquele aceno final; aqueles abraços que nunca mais acabam. Tudo coisas boas, mas sempre muito pesadas. É como se nunca mais nos voltássemos a ver! Se tudo correr bem neste mundo das fronteiras virulentas, teremos uma série de concertos agendados com o New Maker Ensemble em Setembro. Não será assim tanto tempo sem cheirarmos o suor uns dos outros! Acabadas as visitas à Landra, virou-se logo a cassete de Junho para o lado B e passámos nós a ir, então, aos outros sítios. Como as últimas semanas tinham sido abundantes em água (da que cai do céu), não nos preocupámos grandemente em deixar o terreno nas suas próprias mãos. Dissémos-lhe "feliz solestício!" e fomos embora. Temos tratado bem dos campos e, por isso, com a vegetação saudável e variada que nos empenhamos vigorosamente em manter, os solos persistem, ricos, profundos e com grande capacidade de retenção. Assim, quando o verão chega, espreitando maroto, por entre as ervas de haste curta que, em primeiro lugar, deixam de ser verdes, a Landra cuida da sua própria saúde. As plantas e os fungos fazem o que fazem e os animais também. Tudo corre o mais que pode em direção à fase estival; face às flores e aos frutos da derradeira dança erótica de todas as coisas, querendo ser as próximas. Ficou a Landra, no Minho, a portar-se bem, e lá fomos nós. Primeiro, foi Picote. Houve lá um evento (ou melhor, como dizia o organizador: “um não-evento”) cheio de antropólogos e de filósofos, de alguns artistas e de pessoal da zona de Miranda do Douro e arredores com quem se passaram uns bons dias em torno de quantidades obscenas de carne, pão, azeite e vinho, e se mantiveram conversas intermináveis na adega local. O ponto alto foi o fantástico concerto da Mariana (irmã do Rodrigo), seguido por uma atuação ritualística dos mirandeses Galundum que, como já parece ser tradição (mais do que superstição), atraem trovoadas e chuvas fortes quando sacam as gaitas e as flautas tamborilheiras para fazer barulho (do bom!). Assim foi. No meio de Junho, choveu grosso em Trás-os-Montes profundo. Depois de Picote ainda fomos parar a Lisboa. A Sara tem uma peça em exposição no Pavilhão Branco da Galeria Municipal de Lisboa; uma em particular que é bem lixada de montar. Então, lá fomos com antecedência suficiente, num misto de férias e de trabalho, montar a exposição e ver amigos de longa data e outros novos que vão aparecendo naturalmente. Esta peça chama-se Degrees of Abstraction, e foi a peça que a Sara apresentou no final do seu mestrado lá em Londres. É uma instalação complexa e arrojada, cujas partes vão sendo ativadas por performance. A Sara, neste caso, como performer, vai perguntando às pessoas se querem ir abrindo - literalmente abrindo - a peça aos bocados, para se conseguir desvendar o que lá está, por debaixo de umas placas de cimento arenoso. Aos poucos, o que, no início, aparentavam propositadamente ser apenas pinturas abstratas de extremo “bom gosto” vão, no desenrolar das coisas, passando a ser legíveis como gráficos e diagramas, com significados próprios e concretos, diretamente representativos de parâmetros associados a problemáticas agrárias e geopolíticas. Eventualmente, os participantes chegam a pontos em que a Sara lhes pergunta se estão a fins de levar consigo - em plenas mãos abertas - alguns grãos de milho trangénico, ou mesmo samples de agroquímicos tóxicos, entre outros “brindes”, para além da torrente informativa que veste esteticamente a peça, sempre com um toque de humor negro e mordaz. É um trabalho que explicita o implícito, que inquieta, e que exige tomadas de responsabilidade; mostrando e concretizando os problemas que, na normalidade do dia a dia, são estrategicamente mantidos invisivalmente fora do alcance dos olhares comuns. Foram os trabalhos artísticos, particularmente os que a Sara fez nos últimos anos que, nas suas fases de desenvolvimento conceptual e estético, nos levaram a tomar o grande passo que foi termos trocado Londres pela Landra. Hoje, com a vida que mantemos, do lado prático das coisas, a arte que fazemos - mesmo quando ela é de cariz mais discursivo e intelectual - ganha, ainda assim, novas qualidades, novas faces, mais matéria, toda ela mais séria, mais real e mais útil, mais direta e, por isto tudo, inacreditavelmente mais poética, mais científica, mais experimentada, mais útil, mais verdadeira e honesta, mais completa.
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Sara Rodrigues Categorias
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October 2024
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