diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Energia livre
Nunca tivemos tantas visitas de uma só vez! Vieram os nossos amigos Mikhail e Uriel, que escolheram Lisboa como a sua nova casa (depois de terem também deixado Londres) e passaram cá numa viagem de reconhecimento ao norte. De seguida, apareceram a Mariana (irmã do Rodrigo) e as suas amigas Denise, e Júlia; seguidas do Manuel (que conhecêramos em Pitões da Júnias, num louco projeto de escultura megalítica) e do Lorenzo e da Rita (que também conhecemos pelas terras do norte, mas desta vez em Picote (Trás-os-Montes prfundo) num grande "não-evento" no pico da primavera. É uma grande alegria poder trazer tantos amigos cá! Desde os tempos em que se faziam vindimas a sério nesta terra, deve ter sido a primeira vez em que tanta gente pisou a Landra ao mesmo tempo. Sobre o soalho que, no início, julgávamos que fosse cair se espirrássemos, dormiram oito pessoas num quarto só. Uma bela festa em que ninguém morreu, portanto. Já se está a ver que é só no verão que as pessoas querem vir cá! Quando a seca aperta lá para baixo, querem todos a água e o fresquinho do norte… Ah poi é… E ainda não temos o conforto do típico habitáculo moderno, em que correm, por tubinhos de calibres diferentes, a água e a luz, por vezes o gás, e vão todos saír a dispositivos variados, no teto, nas paredes, nos chãos, nas pias… Aqui, os mais exigentes dos nómadas digitais ficam a apanhar seca… Temos um minúsculo painel solar, que consegue gerar volts suficientes para carregar telemóveis e pequenos utensílios, mas ainda não temos um sistema elétrico propriamente dito e não queremos ter nada a ver com a ED(CV)P:(Eletricidade Dos Chineses Vendida a Portugal). Estamos a estudar eletrotecnia para conseguir vir a montar o nosso próprio sistema independente da rede e os prospetos são muito promissores. E quanto a redes de distribuição, já temos uma, para a água! Fizemos um desenho todo catita e começámos a domar a essência da vida aos poucos, levando-a a todos os sítios em que montamos hortas novas com um sistema de irrigação gota a gota. Como crescem as coisas felizes, neste calor, ao sol, e com raízes felizes! Mas atenção, que isto não gira tudo só à volta da água e dos minerais! As nossas várias experiências com tipos de compostagem diferentes estão a dar muitos frutos, literalmente.
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ler sobre: Viagens e visitas
Este mês entrou-nos pela porta, de rajada, com uma data de visitas inesperadas; todas de Inglaterra, quase em modo de contra-blitz. O blitz, neste caso, não fora uma forte chuvada de bombas alemães, mas sim um pequeno virus que, ao precipitar, de leve, sobre vidas das pessoas, deixou mais moças do que se tivessem chovido vacas barrosãs. O sufoco já era bastante - e crescente - naquela não tão grande bretanha. O cocktail mais tóxico já lhes subia pela cintura; dali a nada dava-lhes pelo pescoço, a demolhar as orelhas daqueles que fossem mais baixotes. O “Brexitona”, também conhecido por “Coronexit”, não tem álcool, mas induz ao álcool; de formas tais que, na viragem dos dias - cada vez mais os mesmos, só que mais esturricados de cada um dos lados - ao primeiro sinal de se ouvir um trinco de porta a roçar para que se visse a luz do outro lado, quem pôde, correu pela vida em direção ao aeroporto mais próximo. Já quem não dispõe de tal privilégio, ficou a nadar onde tudo ainda mais se afunda. Pois é. Esta inóspita mistela de “sensações” - assim se referem alguns barmen finos às bebidas que misturam - tem efeitos secundários mais que dolorosos, ainda que localmente anestésicos. Como não temos televisão, e nem por hábito lemos informação de má qualidade em jornais mais ou menos subsidiados, soubemos por amigos e familiares que havia toda uma fuga britânica, e que nos bateria, brevemente, em maneira de onda pseudo-migratória. Ainda que com “brits abroad gone mad” estampado na testa, houve quem, com muita avidez, conseguisse resistir aos fáceis deslizes que facilmente acabam nos calores venenosos do Algarve. Na primeira fornada dos bons sobreviventes ao turismo de massas, vieram os nossos amigos Lucy & Dimitri. Visitaram-nos assim que puderam. Primeiro, passaram uns dias no Porto, e ainda dariam uns pulos por outras terras nortenhas, para reaver outros amigos que, entretanto, já se tinham escapulido, com gosto, das terras de nossa senhora dona rainha mãe. Gostaram tanto da experiência, que já estão à procura de um terreno lá para o meio da Inglaterra! Derretemo-nos de contentamento com a consciência de que a nossa influência, que pode ser vagarosa, é, no entanto, bem certeira. Sabemos que, um a um, vamos incentivando as pessoas - primeiro os amigos, depois os amigos deles - a mudarem de vida. E assim se faz uma revolução. O Dimitry é cowboy aos fins de semana. Isto é, lá em Kent, algures no meio de carvalhais e prados bem ingleses, há uma vila chamada Loredo [deve ler-se com um sotaque norte-americano de travo desértico]. Todas as sextas-feiras, há um bando de gente que sai dos seus trabalhos normais - muitas vezes bem compensados monetariamente pelo stress que exigem no centro de Londres - e que pega nos seus carros a motor - alguns dos quais já elétricos - para se dirigirem a Loredo [olha o sotaque!]. Aí, param as suas viaturas modernas num descampado, trocam de roupa mesmo dentro do automóvel - vestem linhos, cabedais, feltros e lãs mais brutas - e, só então, já desligados e escondidos os telemóveis, põem-se a caminhar, por veredas rurais até chegarem à civilização vitoriana, que animarão durante todo o fim de semana. No saloon - espaço comunitário típico de qualquer western que se preze - acendem as lamparinas a petróleo, começam os cozinhados em grandes panelões de ferro fundido, sacam das armas para as limparem de qualquer poeira ou ferrugem que se tenha acumulado desde a húmida semana passada, e vão-se lembrando das velhas musiquinhas fronteiriças via oeste. Um dia, quem sabe, chegarão à Califórnia, sem ter que chacinar demasiados povos indígenas. Na Landra, nos dias que correm, em vez de armas de fogo, temos um arco de teixo inglês [uns passos atrás, portanto] mas, em vez de lamparinas, temos uma luz LED recarregável com um pequenino painel solar [supostamente uns passos adiante]. Não se pode dizer, portanto, que estejamos num só tempo. Principalmente quando nos vêm visitar cowboys do século XIX (que nos terão alcançado por meio de transportes aéreos compostos por toneladas de metal, propulsionadas pela energia concentradíssima de restos mortais de animais e de plantas bem curtidas). Foi bom tê-los por cá uns dias pois, assim, sempre tivemos o pretexto de irmos conhecer as redondezas a pé, o que, sozinhos, não teríamos feito. Já nos tinham falado mil vezes de uma tal barragem que há aqui perto; que é gira, que é fantástica, que vale muito a pena ir lá nadar e passar um bela tarde. É uma estrutura artificial, montada para aparar a água de duas nascentes da Serra da Cabreira, e para tê-la à mão de semear para apagar fogos, caso estes apareçam misteriosamente nos terrenos florestais… Fomos lá e gostámos muito da experiência, embora a artificialidade ainda nos tenha causado um certo desconforto. Os carvalhos, aceres e pinheiros estão todos plantados com espaçamentos ridículos, supostamente para dar aquela sensação de parque de merendas, algo mais convidativo para famílias do que um bosque cerrado no meio do monte... Após se terem ido embora o Dimitri e a Lucy, nem passavam dois dias e já nos chegava a Roxanna à estação de autocarros de Cabeceiras. A Roxie é nossa amiga e colega no grupo de música contemporânea que mantemos em conjunto, o New Maker Ensemble. Também vinha pisgada de Londres assim que fora possível. É violoncelista do melhor que há e, hoje em dia, anda particularmente interessada em excavar afincadamente as suas próprias raízes iranianas. Não ficou muito tempo e, talvez por isso, a intensidade foi tanta, que estava que não se aguentava com as emoções, de tanta coisa que lhe mostrávamos e que a púnhamos a fazer, incluíndo acartar às costas e à cabeça umas boas sacas de lã cheia de cagalhões e mato... As saudades também já apertavam, pois havia uma data de meses - já a fazer anos, na verdade - que não nos víamos! Ao contrário dos cowboys, que estavam mais num registo de férias de barriga para o ar, a Roxie cá nos ajudou a fazer um montão de tarefas práticas. Estamos habituados a trabalhar com ela, seja em música ou no que for. Desta vez, foi no campo: plantámos montes de feijões e de cucurbitas (courgetes, abóboras, melões, melancias e primos afastados); cavámos mais um bocado de umas valas de dispersão e - talvez a melhor proeza de todas - reabrimos a velha levada que trazia água de uma nascente a mais de trezentos metros de distância até à casa! Até este momento, a casa tem vivido de pedras vivas, numa secura infindável. Só entrava água nesta casa quando chovia, e os buracos na cobertura desempenhavam bem a sua função, deteriorando tudo um pouquinho mais. Isso agora vai acabar. Daqui a nada, a cobertura refazer-se-á, e a água que se verá saindo por torneiras, cá dentro, virá, agora mais controlada, descendo graciosamente pelos caminhos reabertos. Levou um dia inteiro esta proeza. Ia o Rodrigo, na frente, com a sua catana a desbravar mato grosso; logo de seguia, a Sara, com um grande podão a aparar tudo um pouco além das primeiras linhas de corte e, por fim, a Roxie, aprumando os fetos e as silvas e retirando os ainda grados galhos esquecidos do meio do caminho. Assim, marcou uma grande nossa amiga, com a sua chegada, a chegada da água à nossa casa. Desta não nos esqueceremos. As despedidas são sempre uma chatice. As pessoas ficam tristes e caladas, cabisbaixas nas horas que nos levam àquele aceno final; aqueles abraços que nunca mais acabam. Tudo coisas boas, mas sempre muito pesadas. É como se nunca mais nos voltássemos a ver! Se tudo correr bem neste mundo das fronteiras virulentas, teremos uma série de concertos agendados com o New Maker Ensemble em Setembro. Não será assim tanto tempo sem cheirarmos o suor uns dos outros! Acabadas as visitas à Landra, virou-se logo a cassete de Junho para o lado B e passámos nós a ir, então, aos outros sítios. Como as últimas semanas tinham sido abundantes em água (da que cai do céu), não nos preocupámos grandemente em deixar o terreno nas suas próprias mãos. Dissémos-lhe "feliz solestício!" e fomos embora. Temos tratado bem dos campos e, por isso, com a vegetação saudável e variada que nos empenhamos vigorosamente em manter, os solos persistem, ricos, profundos e com grande capacidade de retenção. Assim, quando o verão chega, espreitando maroto, por entre as ervas de haste curta que, em primeiro lugar, deixam de ser verdes, a Landra cuida da sua própria saúde. As plantas e os fungos fazem o que fazem e os animais também. Tudo corre o mais que pode em direção à fase estival; face às flores e aos frutos da derradeira dança erótica de todas as coisas, querendo ser as próximas. Ficou a Landra, no Minho, a portar-se bem, e lá fomos nós. Primeiro, foi Picote. Houve lá um evento (ou melhor, como dizia o organizador: “um não-evento”) cheio de antropólogos e de filósofos, de alguns artistas e de pessoal da zona de Miranda do Douro e arredores com quem se passaram uns bons dias em torno de quantidades obscenas de carne, pão, azeite e vinho, e se mantiveram conversas intermináveis na adega local. O ponto alto foi o fantástico concerto da Mariana (irmã do Rodrigo), seguido por uma atuação ritualística dos mirandeses Galundum que, como já parece ser tradição (mais do que superstição), atraem trovoadas e chuvas fortes quando sacam as gaitas e as flautas tamborilheiras para fazer barulho (do bom!). Assim foi. No meio de Junho, choveu grosso em Trás-os-Montes profundo. Depois de Picote ainda fomos parar a Lisboa. A Sara tem uma peça em exposição no Pavilhão Branco da Galeria Municipal de Lisboa; uma em particular que é bem lixada de montar. Então, lá fomos com antecedência suficiente, num misto de férias e de trabalho, montar a exposição e ver amigos de longa data e outros novos que vão aparecendo naturalmente. Esta peça chama-se Degrees of Abstraction, e foi a peça que a Sara apresentou no final do seu mestrado lá em Londres. É uma instalação complexa e arrojada, cujas partes vão sendo ativadas por performance. A Sara, neste caso, como performer, vai perguntando às pessoas se querem ir abrindo - literalmente abrindo - a peça aos bocados, para se conseguir desvendar o que lá está, por debaixo de umas placas de cimento arenoso. Aos poucos, o que, no início, aparentavam propositadamente ser apenas pinturas abstratas de extremo “bom gosto” vão, no desenrolar das coisas, passando a ser legíveis como gráficos e diagramas, com significados próprios e concretos, diretamente representativos de parâmetros associados a problemáticas agrárias e geopolíticas. Eventualmente, os participantes chegam a pontos em que a Sara lhes pergunta se estão a fins de levar consigo - em plenas mãos abertas - alguns grãos de milho trangénico, ou mesmo samples de agroquímicos tóxicos, entre outros “brindes”, para além da torrente informativa que veste esteticamente a peça, sempre com um toque de humor negro e mordaz. É um trabalho que explicita o implícito, que inquieta, e que exige tomadas de responsabilidade; mostrando e concretizando os problemas que, na normalidade do dia a dia, são estrategicamente mantidos invisivalmente fora do alcance dos olhares comuns. Foram os trabalhos artísticos, particularmente os que a Sara fez nos últimos anos que, nas suas fases de desenvolvimento conceptual e estético, nos levaram a tomar o grande passo que foi termos trocado Londres pela Landra. Hoje, com a vida que mantemos, do lado prático das coisas, a arte que fazemos - mesmo quando ela é de cariz mais discursivo e intelectual - ganha, ainda assim, novas qualidades, novas faces, mais matéria, toda ela mais séria, mais real e mais útil, mais direta e, por isto tudo, inacreditavelmente mais poética, mais científica, mais experimentada, mais útil, mais verdadeira e honesta, mais completa. ler sobre: Formas de vida
Abril é expansão. Os dias alargam-se, sendo o maior que podem, e lá se deita o sol, esticando-se, todos os fins de tarde, a ver se arranha as escarpas, cada vez mais a norte, lá para as Serras da Cabreira. Abril águas mil. Assim o dizem também, não é? Não podemos dizer que as águas tenham sido assim tantas, para que se justifique à risca o ditado, mas foram as que bastaram, equilibradamente regando os campos de manhã e de noite, e enchendo-nos os bidões com água da melhor que há: de PH neutro; com uma infinitude de leveduras selvagens; algumas algas e bactérias fotossintéticas (que vieram dos telhados musgosos); e muita vontade de conhecer a terra. A composição topográfica deste país - com as serras que, bem altas, o cortam ao meio - oferece-nos uma grande abundância de água. Uma água que, por cair aqui, não cai noutros sítios, infelizmente. Uma abundância que, por vezes, é de gestão matreira. É que esta terra brota água por todos os lados e, ainda que bem drenada, a quantidade é tanta, que as comunidades de plantas organizam-se em torno de uma extensa rede de pequenas máfias aquáticas, em que dominam as nossas favoritas - as angélicas - por entre as várias mentas, os vigorosos junquinhos e uma data de lamiáceas. Mesmo com tanta água para encaminhar, temos estado cada vez mais atentos aos milagres da precipitação. Quando o ar se sente húmido, quando as nuvens pesam, quando nos chega à pele a mais pequenina das gotas ou, vá lá, quando de rompante, começa mesmo a chover a potes, desatamos logo a correr para a recolha! Fazemos isto pois aqui, no noroeste ibérico, extensamente coberto por umbrisolos ácidos, a água terrestre acaba, ela mesma, por ser também ácida. Já a água da chuva - mais neutra e menos mineralizada - ajuda sempre a manter tudo no lugar. A longo prazo, os solos livram-se de sofrer com problemáticas concentrações salinas, e sempre deixam de ter azia. A chuva é um bem que cai do céu. Desperdiçá-la é das maiores parvoíces de sempre… Por acaso, ou não, quando viemos para cá de bicicleta - há umas semanas atrás - deu um dia perfeito; claro, cristalino, sem uma pinga que fosse, nem uma nuvem à vista. É isso mesmo! Decidimos trazer as bicicletas para cá para a Landra. Assim, facilitam-se as idas à vila, que fica ainda a uma meia hora daqui. Sempre que contamos esta estória a alguém, saem disparados os comentários: “ai que loucura!”; ou o típico “vocês são passados da cabeça”; ou ainda o mais insólito (ainda assim ocorrente) “mas isso é impossível!”. Bem, comparado com uma viagem que o Rodrigo fez, uma vez, de Londres a Colónia (na Alemanha), e da Colónia, de volta, mas para o Porto, esta - do Porto a Cabeceiras - não foi nada; foi como água. Essa viagem pela Europa foi cumprida, em tom de epopeia, sem bomba de ar, sem remendos, sem ferramentas, nem câmara de ar suplente, nem GPS, nem mapas, nem roupa suficiente, nem nada. Nem um problema [a não ser uma sede danada que, em pleno agosto, quase o matou no nordeste francês entre campos secos e maltratados, e uma sucessão de pequenas vilas abandonadas]. Desta vez, bem precavidos e com receio do que pudesse vir a acontecer pelo caminho, viemos carregados com um arsenal de equipamentos, e pronto, lá tivemos um furo a meio do caminho para dar uso às ferramentas! Estávamos mesmo a pedir… Também viemos sem mapas nem GPS. Viemos a seguir o sol, ou melhor, a seguir a nossa própria sombra. Saímos do Porto ao meio-dia, o que quer dizer que o sol estava a sul; as sombras a norte, portanto. Ao ir-se pondo o sol, as nossas próprias silhuetas - bem desenhadas no chão, por se fazer um dia incrível - guiavam-nos sempre, muito certas, em direção a Cabeceiras. Mas esta viagem não foi assim tão suave! Calma… Para além do furo (que o Rodrigo reparou num abrir e fechar de olhos, ao estilo fórmula um), chegados a Guimarães, a Sara achava que já não tinha joelhos, mas ainda nos faltava mais de metade do caminho. A chegar a Fafe, entrámos sem querer numa via rápida [não digam nada à polícia!] e, ao demorarmos mais do que tínhamos planeado, o sol escondia-se por detrás das serras. A verdade é que já havia pouca luz na estrada, e não nos servia a lua, pois estávamos na sua fase errada… A páginas tantas, estávamos em montanhas que nunca mais paravam de subir e que já nem de bicicleta se faziam. Estávamos agora a pé, sem sol, e com algum medo (não infundado), de sermos abordados por uma matilha de lobos. O cansaço e a altitude, crescentes, combinavam-se na forma de incrementais calafrios, desmoralizantes. Nas grandes alturas, em que ofegar é a única forma de respirar, e as nuvens, abaixo dos nossos pés, nos faziam acreditar que aquela subida nunca mais teria fim, entrávamos, inesperadamente, pela malha urbana adentro, que as Terras de Basto exibiam, mesmo ainda nos montes, a escorrer, caminho a baixo, via Cabeceiras. Os travões da bicicleta do Rodrigo, que foram comprados numa loja de ciclismo com mais de cem anos na Maia, são vintage e, talvez por isso, guincham que é uma maravilha… A descida foi pontuada com longas notas intermitentes, bem enervantes, de borracha rija e alumínio barato. No fim de nove pedalantes horas, dormimos que nem pedras, na nossa grutinha de pedra; e foi a última vez. Há uns dias, a Catarina - amiga da Sara - veio-nos visitar com os pais. Vieram ver o terreno, que não fica nada longe de uma casa que têm em Chacim, a cinco minutos de bicicleta daqui. Já tinham ouvido falar de que andamos a trabalhar muito, e de que estava tudo a ficar bem bonito, e queriam averiguar a situação. Ao chegarem cá em baixo, começaram-se logo a despir. A temperatura é, de facto, bem diferente daquela que lhes gelava os couros durante o inverno, aos setecentos metros de altitude. Aqui, aos trezentos, e num vale bem mais arborizado do que as serras lá para cima, as coisas são mais meigas e gentis. Uma geada que se preze, fica o dia todo a queimar as verduras e a fazer cair as flores dos antecipados Prunus, coitados. Aqui, um friozinho que se veja azulado durante as primeiras horas da manhã, não dura mais que isso: algumas horas (e só de manhã) nalguns dias do ano apenas, e vai-se sempre antes que o sol beije as faces de todas as coisas verdes. Portanto, estamos numa liga mais leve, no que toca a enfrentar a firmeza do famoso “inverno nortenho”. Isto para dizer o quê? Que os pais da Catarina - um engenheiro e uma arquiteta - ao verem a casa; ao entrarem nela, e ao efetivamente começarem a pular sobre o soalho (para provar que estava de não se morrer nele), perguntaram-nos, surpreendidos, se tínhamos mesmo a certeza de que queríamos a continuar a viver numa furna… Eles achavam que o velho soalho da casa principal, embora mais usado que um hábito papal quinhentista, estava em muito bom estado e serviria, não só para suster o peso dos quatro cavalos que cá viveram, mas o nosso próprio e o das nossas muito minguadas tralhas. E foi assim que mudámos para a nova (velha, e verdadeira) casa. Em dois dias, abandonámos o palheiro, que tinha albergado umas quantas vacas. Passávamos, então, a ser como pessoas, no Carvalhal. Agora, com duas janelas para o mundo [o nosso habitáculo anterior não tinha abertura alguma], acordamos todos os dias com os avanços milagrosos da primavera. As giestas estão em flor, com aquele manto amarelo, embriagante, de cheiro doce tão sedutor; tudo cresce, espiga, refila, desponta e abunda; apenas os castanheiros, mais estivais, aguentam os seus botões, firmes, seguros, até que cheguem os dias mais quentes. No barraco em que dormimos até agora, as portas nem fechavam e faltavam-lhes grandes pedaços de madeira que, de podre, já se tinha convertido em solo a favor das silvas e dos fetos. Agora, para além de janelas, também temos portas (ainda que apenas uma tranque por dentro e faltem alguns vidros às janelas). Estas são as condições em que vivemos. Quando as descrevemos aos nossos conterrâneos, aqui em frente, na aldeia de Eiró, metade acha que somos os maiores, metade acha que somos um bocadinho parvos. A senhora Geralda - a tasqueira de cá da zona - diz-nos que não temos necessidade de comer as coisas que comemos; que em vez de comermos “ervas do chão”, deveríamos plantar couves e batatas. De facto, temos algumas couves galegas, que são tão deliciosas, e as batatas, daqui a nada, estão de se papar num bom caldo verde, mas é que nós gostamos mesmo das nossas magníficas “ervas daninhas”: temos sarralhas bem tenrinhas, e alguns dentes de leão aqui e alí, temos urtigas e lâmios (comicamente conhecidos por “chupa pitos”); as primaveras já nos alimentam desde janeiro; há labaças e angélcias mesmo à frente de casa; todos os muros ostentam os seus umbigos de vénus; as ajugas aparecem pelos prados lá em baixo fazendo frente às variedades de menta que persistiram o inverno todo, já se cheiram os orégãos frescos de longe e há azedas espalhadas por aí… O que não nos falta é comida por todo o lado. Sabemos que estas espécies são incrivelmente nutritivas e que nos fazem muitíssimo bem! As outras pessoas já quase nem as reconhecem, pois há muito que as expulsaram dos seus terrenos, infelizmente. Mesmo com as pequenas grandes diferenças a separar a nossa forma de vida da dos outros, temos gostado muito de visitar Eiró. Até muito recentemente, estávamos tão embrenhados no trabalho diário, que nem tínhamos tido grande tempo para lá irmos antes que anoitecesse. Agora, que os dias já ganharam um tamanho decente, sempre nos sobram uma ou duas horas para atravessarmos o rio mais belo que já se viu e convivermos um pouco com as pessoas que já cá viveram vidas inteiras. Cada um vai-nos contando a sua própria estória e, aos poucos, há toda uma figura que se monta daquilo que terá sido um passado áureo aqui da Quinta do Carvalhal. Muitos dizem-nos que “aquilo é que era um quinta!”; que produzia um montão de azeite e que as pipas de vinho não paravam de rolar caminho a baixo; dizem-nos que a fruta nunca faltava; que as laranjas eram as melhores, e que havia maçãs de cá da zona que a todos faziam salivar em anticipação. Hoje, após trinta anos de "abandono", esta terra chama-se Landra e, pelas nossas mãos, vai dando passos numa direção que muitos revêem como aquilo que esta terra já foi: um verdadeiro jardim, cheio de vida e de comida. |
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Sara Rodrigues Categorias
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May 2024
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