diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Reencarnação diplomática
No início do mês, vieram-nos visitar o João Costa e a Lena. Com eles vieram também o Telmo a Joana e o Gipsy. Montámos o estaminé na nossa eira e fizemos aquela típica patuscada à portuguesa com sandes de bifana e tudo. A pequena diferença é que era tudo vegan! Quer dizer, o Rodrigo tinha-se esquecido deste pequeno detalhe e, no dia anterior, adicionou - num gesto improvisado - uma rodelinha de chouriça de sangue ao arroz, só para dar sabor… Muita conversa da boa dilui, sem problemas, uma bronca destas. Foi um dia bem passado, portanto, passeando pelo terreno e fazendo, em conjunto, alguns trabalhos circunstanciais. Por exemplo, uma das levadas principais estava a perder alguma água. Reparámo-la em minutos, e ainda houve tempo para todos conhecerem a Dona Leonor, que andava pelo caminho à procura de um dos seus cavalos, que tinha fugido caminho a Cambeses… É sempre para lá que ele vai quando escapa... Falando de água, foi só ao fim de dez meses, que encontrámos a nascente que faltava. Viva! A água andava perdida, escapando por entre pequenas fissuras e rachas, que há por todo o lado no emaranhado rochoso destas serras. Nos últimos tempos, tem deslizado, todinha, monte abaixo, inevitavelmente acabando por ir bater ao rio, sem que antes servisse à Landra uma gota que fosse. Nesta altura do ano, os dias, cada vez mais longos, trazem consigo, não raras as vezes, aquele sol alto e reto que, com uma eminente força tórrida, pré-estival, já ameaça algumas ervas com uma sede imposta. Para toda a nossa conveniência, descobriu-se que, ao longo de todo o caminho que nos leva até casa, corre, paralelamente, uma levada, já muito antiga, feita em pedras do tamanho daquelas que só uma comunidade inteira conseguiu mexer, e colocar no sítio! Estava completamente coberta com silvado, giestas, tojos e algumas árvores de água (ulmeiros, amieiros, salgueiros, cerdeiras, frângulas, rhamnus, e umas macieiras bravas aqui e alí). Com alguma pena, tivemos de desbravar caminho - passo a passo, palmo a palmo - até dar de caras com as muralhas espessas de um açude - com muitos anos também - que recolhe e que guia a água de outras três nascentes. É essa a água que teremos nas torneiras não tarda nada, mas para já, há que desenrolar, conectar e enterrar quatrocentos metros de tubo… De piqueiretas e pás na mão, o trabalho cá vai andando. O que também nos está mesmo à mão (ou melhor: aos pés) são as nossas bicicletas! Com elas, temos ido regularmente (uma vez por semana) à vila. Damos sempre um pulo ao mercado para ir buscar o que - ainda! - não produzimos, e passamos algum tempo, por volta do almoço, no Café Cabeceirense - dos animados irmãos João e Francisco - para usar um bocadinho da sua internet. Os afazeres administrativos ainda nos perseguem (e preenchem) as segundas-feiras que, por acaso, também são os dias em que damos aulas de música online aos filhos de colegas e amigos, uns em Portugal; outros em no estrangeiro. Relacionamentos digitais à parte, também temos vindo a conhecer mais e mais feirantes locais, cada um com as suas produções caseiras, seja de enchidos, de padaria e pastelaria, de fruta e hortaliças ou mesmo de ferramentas manuais, com quem já temos alguma confiança para inspirar uns descontos jeitosos aqui e alí. Costumamos frequentar a banca do Carlos e da Karina que só têm produtos biológicos de alta qualidade. Pedem-nos sempre que sejamos rijos e críticos com as coisas que nos passam para as mãos e que, eventualmente, meteremos na boca... Querem que lhes digamos honestamente sempre que alguma coisa não estiver em condições. Até agora não há razões de queixa! Venderam-nos um limoeiro bravo - propagado por alporquia - que conseguiu chegar à primavera triunfante, após um inverno particularmente rigoroso. Tem sido uma missão complicada, esta de se encontrar limoeiros à venda… Aparentemente andam todos com uma doença qualquer que lhes rebenta as folhas todas; uma verdadeira desgraça. Porém, nunca vimos, com os nossos próprios olhos, a tal doença nas nossas laranjeiras, mas a verdade é que em nenhum horto se vê limoeiros à venda; e todos dizem com ar de caso “estão proibidos!”. Devemos ter comprado um limoeiro ilegal - um bandido, portanto - rijo mas honrado pela sua avidez e sagacidade; por ter não só suportado as geadas deste tão maldito ano, mas por ter aguentado, nos braços, um belo limãozinho, como se faz com um bebé no meio de um naufrágio. Agora já tem muitas raízes e vive feliz no patamar das laranjeiras! Antes de falarmos de outros feirantes, há que dizer que a razão pela qual o Carlos e a Karina decidiram praticar agricultura biológica está relacionada com o seu filho, quem tem leucemia. As circunstâncias da vida propuseram-lhes um cuidado mais atento a tudo o que lhes entra pelo corpo adentro. Às segundas, no mercado, está lá sempre a senhora Conceição, enfiada debaixo de um consorte de panos (para proteger a mercadoria do sol direto). Aqueles lençóis todos dão, de facto, um ar de tenda cigana a tudo aquilo e, como ficam mesmo muito baixos, detraem alguns compradores de se aproximarem o suficiente para perceberem o que é que deveras lá se vende. Lá por baixo, a senhora vende as magníficas broas de centeio e de milho, que faz à moda antiga. Pesam no mínimo um quilo e tal cada e crescem com fermento natural: “uma bolinha do próprio miolo basta” diz ela, e acrescenta “mas tem de se deixar durante duas noites pelo menos!”. Quem diria que, após ter passado por um inferno de quase trezentos graus, a massa no interior do pão continuaria viva! Essa é uma forma de se manter o fermento de um pão para o outro sem termos de andar sempre com aquele frasco explosivo de massa-mãe atrás. À parte da porporção, que tem de ser enorme, para que isto funcione, não é forma melhor nem pior, é diferente. Assim são as broas do norte. No mercado também há a senhora Fernanda, de Chacim, que tem os melhores enchidos da zona. Também tem mel, mais ao cuidado do marido, mas os enchidos é que lhe verificam e reinscrevem semanalmente a fama. É ela quem os prepara, do início ao fim, todos em casa, com animais seus, sem certificados nem nada, e corre sempre bem! Já nos convidou várias vezes a passarmos lá um dia, quando quisermos, para aprendermos como se faz. Assim o faremos com muito gosto, quando a altura vier. Ir a Chacim, ainda que razoavelmente próximo daqui, ainda é uma excursão que se tem de planear com cabeça. Numa destas vezes, o Rodrigo meteu conversa com ela, mas não foi sobre enchidos, nem sobre mel. Foi em torno do assunto da lã, que a conversa magnetizou um pequeno grupo de senhoras de idade e de outros quantos feirantes. Agora, que é época de tosquias, temos passado mais vezes por Eiró para ver quem terá lã para nos dar. A primeira quantidade foi-nos oferecida pela Nela e pela sua família. Vivem todos numa grande casa - rosa forte, garrido - junto à estrada nacional que vai daqui para para os lados de Monte-Alegre. Têm umas vinte e cinco ovelhas nuns campos aqui perto, e foi de bom grado que nos quiseram passar dez sacas cheíssimas de lã para as mãos, e para as costas! Para eles, tem sido um fardo acrescido, ter de arder toda aquela fibra infindável, após as tosquias. É isso que fazem com a lã, e não é só a Nela e as outras pessoas daqui que o fazem, é mesmo em todo o país (e provavelmente além) que isto se passa. Ardem-na toda como quem arde notas de cinquenta. A lã perdeu o seu valor nos mercados - isso é um facto - mas nada invalida, nem abate, o verdadeiro valor económico, tecnológico e cultural que ainda tem e sempre terá. A Ana - filha da Nela - ajudou-nos a carregar as dez valentes sacas de lã às costas e fitou-nos a descer, que nem burros de carga, pelo caminho, não sem alguma incredulidade. Estarmos interessados em lã é uma coisa; não termos um veículo com tração às quatro rodas para dar cabo destes trabalhos já é outra. As duas coisas juntas já são dignas de uma certa estranheza. Contudo, no final de contas, todos gostam da nossa intenção de valorizar o que é local e, por isso, apoiam-nos alegres nas nossas aventuras. Foi a primeira vez que sentimos a lã pura na pele. Não foram os poucos cagalhões secos, encrostados e perdidos naquelas nuvens fibrosas, nem foi arranharmo-nos com as hastes de cardos e de tojos secos que nos impressionaram. Foi toda aquela oleosidade, e o cheiro, tão cheio de caráter! Voltavam a arder as feridas e os cortes das mãos e dos braços, o que não sabemos se é bom se é ou mau, mas sabemos que é valiosa - essa mesma oleosidade natural - na resistência deste material contra o fogo, face à agua, e às famosas traças! Vamos ter de a lavar e cardar com cuidado, não vá a lá ficar tratada de mais, como a que se vende por aí, completamente intoxicada de borax e de outras coisas menos naturais e bem piores… Quem nos ensinou isto tudo, foi o artista Mikhail Karikis, que agora vive em Portugal, mas que é grego, e o seu pai era pastor, lá nas montanhas Gregas, bem a norte. Ser pastor, naquela altura, naquela região, envolvia ter de dormir, por vezes, nas copas das árvores para se proteger dos lobos. Ele lá sabia das suas matérias lanzudas. Hoje, aprendemos nós o que podemos, com o conhecimento de causa dos outros. É por isso que metemos conversa fiada com as pessoas (nem sempre as mais “antigas”) que suspeitamos ainda serem detentores de um segredo qualquer da história. Vamos perguntando e puxando por mais e mais detalhes de tudo aquilo que não conhecemos. Assim, vamos reinventando, pelas nossas próprias mãos, toda uma tradição que se perde se não for praticada, seguida e refeita, sempre de novo. Num museu, tudo é para morrer cristalizado em memória de um passado qualquer. Até as coisas mortas, se formos ver bem o que se passa, não estão mortas de facto. Estão somente à espera de viverem outra vez. Os cadáveres dos animais mortos também se decompõem, e toda aquela matéria orgânica passa a integrar os corpos de outras coisas vivas. Reincorporar-se-ão mais uma vez na rede da vida. Se não for agora, será um dia, por certo. Cá está a reencarnação, tão honesta e aberta para todos os céticos, que são incapazes de imaginações mais interessantes do que aquelas as da engenharia moderna. Nesta matéria - numa corda sensível entre a engenharia e a encarnação - temos-nos vindo a aperceber de uma realidade muito peculiar, e um tanto quando sórdida, que se passa nos nossos terrenos. Hoje, cada vez menos, os animais morrem nas terras onde viveram. Isto não é, nem de perto, falar das condições de vida desses mesmos animais. Muitos nem viram nem pisaram terra de todo! Essa será outra conversa. De qualquer forma, os animais, para que morram de forma legal, são retirados para sítios de abate; instituições da morte organizada. Pouca gente terá imaginado, na altura em que as “boas ideias” foram tidas sobre aumentar a produção de carne ao mesmo tempo que se melhorariam as condições sanitárias desta indústria (pouca importância se dá à subjetividade do animal em sí), que um resultado direto desta tramóia toda seria começarmos a notar carências misteriosas de fosfato de cálcio nos nossos solos… A boa floração e frutificação das nossas plantas, assim como a produção de sementes de qualidade dependem tremendamente da disponibilidade destes nutrientes na terra. Quando, para "resolver" este problema, se começa a enfiar fertilizantes sintéticos (ou mesmo dos inorgânicos, naturais, extraídos mecanicamente) pela terra a dentro, então aí é que estamos a entrar de cabeça num valente berbicacho. Aqui na Landra, ainda não temos animais de porte considerável, nem os teremos durante alguns anos, mas sabemos que é importante a presença animal - especialmente de mamíferos herbívoros - por perto, se quisermos que a nossa terra seja saudável da forma o mais natural possível. Isto não se restringe ao estrume que as vaquinhas e os cavalos deixam por todo o lado, adubando os solos. Estamos mesmo a falar de vectores de polinização, mas também de animais mortos; restos de carcaças, de ossos, de cartilhagens e tutanos, afundando-se pelos solos no canto dos tempos. Seguindo as práticas de agricultura natural coreana, sabemos o que fazer para remediar a situação a curto prazo e, por isso, num dia destes, o Rodrigo foi a um talho local pedir que nos dessem todos os restos que não fossem utilizar para mais nada. O que fazemos com eles? Partimo-los aos pedacinhos, mandamo-los, no fim do jantar, para dentro da salamandra em brasas e fica tudo carbonizado; "PALEOBLACK: PRETO MAIS PRETO NÃO HÁ!!!" De seguida, é só diluir tudo em vinagres ou outros ácidos orgânicos, durante umas semanas e voilà! Pronto a utilizar nas regas, diluído de um para mil! Estes animais, que não comemos, acabarão por ser a razão pela qual as nossas laranjas serão tão doces, e as nossas nozes não apodrecerão antes do tempo com uma casca rachada por falta de cálcio. De forma semelhante, todas as nossas cucurbitas (família das abóboras, courgettes, melancias, melões etc.) estão a crescer com uma ajuda extra de compostos líquidos feitos com base nos corpos esmagados e fermentados das briónias (Bryonia dioica: um tipo expontâneo e extremamente vigoroso de cucurbita). Uma coisa que não podemos comer em demasia - por ser um tanto quanto venenosa e, por dar, sinceramente, frutos demasiado pequenos para que a maior parte de nós os conheça de todo - acaba por ser a rampa de lançamento para as nossas deliciosas e nutritivas abóboras. Agradecemos a toda a vida que acaba por ser a nossa - ou melhor - que continua, antes de ser outra, sendo-nos. Entretanto, este ano tem sido cheio de convites e de propostas vindas daquele lado do mundo em que a cultura é mais objeto do que processo; ou pior, mais o culto dos fazedores do que da coisa que se faz. Amarguras artísticas de lado, estes convites são, obviamente bem vindos, especialmente quando nos pagam decentemente (ou quase) pelo trabalho que fazemos. Desta vez, várias pessoas e instituições - simultaneamente mas independentemente - chamaram pela Sara; que nos presenteasse com trabalhos artísticos - novos, mas também antigos, refeitos - em vários momentos e ocasiões deste ano. E pronto, com a múltipla responsabilidade depositada sobre os seus ombros, lá foi a Sara trabalhar para o Porto pois, na Landra, ainda não há condições para a produção de arte contemporânea com uma forte componente de trabalho digital… Ficou o Rodrigo a servir de caseiro e a avançar trabalhos variados. Num domingo, levantou-se cedo que baste para ir levar algumas azeitonas à Dona Sameiro, em Eiró. Tínhamos lá ido os dois, em Fevereiro, quando estávamos muito desanimados com a história dos caçadores; aqueles que, sem permissão, nos entravam pelo terreno adentro para ir aos javalis e, no processo, nos cortavam recorrentemente as vedações, postas precisamente para manter os javalis, mas também os cavalos do lado de fora… Já sem ideias do que fazer quanto àquela situação tramada - o inverno a apertar-nos o humor contra as paredes do fundo - subimos a Eiró para falar com alguém, com quem quer que fosse para - como nos disse o José Oliveira - fazermos política popular na ágora local. A nossa relação diplomática com os habitantes locais já conta com alguns grossos sucessos. Em troca de lã, de informação e de mais contactos, sempre vamos oferecendo azeitonas (aquelas com uma cura especial coreana) e café de bolota (que não é, mas que sempre é recebido como se fosse coisa nova, um conceito inovador!). Dessa vez, por ser domingo, o filho desta senhora estavam em casa. Chama-se José Manuel e é professor de engenharia industrial no Instituto Superior de Engenharia do Porto. O José nunca viveu noutro sítio que não fosse em Eiró. Nem duas horas dentro de um carro para lá e para cá, nas já muitas vezes batidas estradas, o fazem mudar de ideias. Ninguém diria, mas aqui mesmo nesta aldeia - em que não vivem mais de trinta pessoas - o José tem todo um estúdio de máquinas e robôs que produzem mais máquinas e mais robôs, para além de simples peças para os seus alunos, quando o ISEP não tem capacidade de as fabricar, ou mesmo quando as empresas em que esses mesmo alunos estagiam também não conseguem fazer aquilo que deveriam. Consegue-se aqui em Eiró; a inesperada ponta de lança do design industrial Português. Com Maio pelos fins, são mais frequentes os calores e, o trabalho, quando pede mais força, também pede mais água. Assim se lavam e refrescam os rostos suados, salgados e peguentos. Mas nem sempre a água resolve tudo. Num dia, esteve tanto sol, tanto calor, que Maio parecia Junho. O Rodrigo, sozinho no campo, a trabalhar a duzentos à hora, começou a ofegar tanto, com rios nojentos de poeira e sal a descerem-lhe pela nuca abaixo, que decidiu de rompante que iria desbastar a sua própria lã. Com que então, estamos na altura das tosquias. Fê-lo sozinho, e foi mesmo sem ver nada, pois não há espelhos na Landra (e estava de noite). O estilo é o táctil e é o do arejamento funcional. É o que for, se servir para o que serve. Na natureza, só quando a água está parada, desoxigenando-se lentamente, é que podemos dar uma de Narciso. A gadelha, entretanto, não foi ao fogo, foi parar ao composto, sendo que não tem a mesma qualidade da lã de ovelha e, por isso, não servirá de grande coisa para fabricar feltro bruto para isolar o interior da nossa casa.
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Sara Rodrigues Categorias
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October 2024
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