diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Mãos Corajosas à Obra
A casa já nos pedia por favor que nos apressássemos com as obras. Precisava de ser coberta, não fosse o interior degradar-se ainda mais. Foi isso que fizemos. Mal houve uma semana de jeito. Arregaçámos as mangas e pusemos mãos à obra. Com os andaimes que tínhamos já arranjado na loja do senhor Parente, em Cabeceiras, andámos todos empoleirados nas alturas a arranjar estruturas de madeira e topos de paredes para que aterrasse em estilo o novo telhado. Até este momento, dando-se conta da localização particularmente bizarra da nossa casa - isolada no meio de uma floresta, num vale, apartada da estrada nacional novecentos metros de caminho incerto que baste - todos a quem pedimos ajuda com as obras de recuperação acabariam eventualmente por abandonar o barco, uns mais sorrateiramente que os outros… Os últimos com quem tínhamos falado, tinham sido os Carvalho - pai e filho - muito conhecidos em Cabeceiras como bons carpinteiros, procurados especialmente pelo suposto brio e bom gosto com que fazem móveis e acabamentos fininhos… Nós não queríamos grandes acabamentos, se não as bases, mais básicas em bem feitas que pode haver; fortes e duradoiras, tudo no sítio com os melhores materiais. Acabamentos fazemos nós! O Carvalho filho, ao descer o caminho a pé para ver a casa, foi-se acanhando na comunicação, cada vez mais esguia, escassa até se perder de vista. Após esperas e hesitações já desgostosas, foi o próprio Carvalho pai que nos indicou o Senhor Machado, mais conhecido pelos sítios de Pedraça como “O Batatinha”. Para todos efeitos, foi o Senhor Machado, o único corajoso, aventureiro e um tanto quanto louco que se dignou a cumprir a promessa. Chamou o irmão, que é tanoeiro, e um amigo com quem costumam trabalhar, e desceu de trator carregado, em várias partes, com as mil e tal telhas e uns tantos barrotes pelo nosso caminho abaixo. Alguns barros, como seria de esperar, partiram-se, mas isso faz parte da aventura! Até o trator ficou alagado num buraco ao tentar sair daqui num dia mais húmido, e tivemos de trazer ainda alguns barrotes aos ombros para lembrar os velhos tempos em que as pessoas de Eiró, quando morria alguém, iam a pé, de caixão às costas, para a Igreja de Riodouro (que fica do nosso lado), tudo para merecerem um pouco de bacalhau seco quando lá chegassem à cerimónia, que era sempre meia triste, meia alegre. Com medo de que viessem por aí as chuvas a sério, o trabalho fez-se rápido e certo até tudo ficar pronto. Quando chegou à vez de tratarmos as madeiras que ficariam mais expostas aos elementos, tivemos o prazer de demonstrar aos profissionais que também sabíamos uns truques fixes. Recentemente, tínhamos passado em Foz-Côa, de onde trouxéramos umas quantas galhas de terebinto selvagem. É uma planta do mesmo género do pistácio (que se come) mas que produz carradas de resina volátil, e que se destila para produzir a turpentina. Misturada com cera de abelhas e óleo de linhaça em partes iguais, faz um belo produto para tratar madeiras que se queiram protegidas da chuva, dos fungos e dos insectos! Os Machado até são os carpinteiros mais tradicionais que já encontrámos por estas bandas, mesmo assim, se não lhes tivéssemos imposto este mais lento e moroso tratamento à moda antiga, as madeiras exteriores teriam sido todas pinceladas com bondex… Sentados nos andaimes, acabávamos nós as madeiras enquanto o Senhor Machado ia fixando as telhas, não fossem levantar voo com os ventos mais fortes do inverno… Fora estas pequenas dissidências, o Senhor Machado gosta do nosso pão de bolota, gosta do ambiente assim, selvagem, e gosta de nós. Quando veio cá pela primeira vez, mostrámos-lhe onde dormíamos, como fazíamos comida, as nossas novidades na horta, e deixámo-lo emocionado com a nossa forma de vida. Disse-nos logo que lhe fazia lembrar da sopa que a avó dele fazia; nos tempos em que era verdadeiramente feliz, sem luz, nem água encanada. Para lhe passar a melancolia, de saber que o seu próprio filho já não lhe seguia os passos, demos-lhe uma folha de mostarda roxa para as mãos. Meteu-a à boca e disse “Foda-se ca puta! É picante c’mó caralho!!!”. De seguida, olhou para os inhames que temos a crescer mesmo aqui em baixo da casa, na primeira horta que abríramos. Mirando as suas copas gigantes, perguntou-nos se eram jarros. Dissemos-lhe que eram da mesma família, mas que estes, tinham vindo da Madeira e se lhes comíamos as raízes, tiradas em Abril. Quando se começarem a propagar decentemente, vamos tratar de fazer chegar inhame a toda a gente da zona! Vai ser um sucesso!
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ler sobre: Bolota não é café, é bolota
Ok, estava frio. Mas frio, frio, não são graus positivos (o que é sempre positivo). Temos amigos italianos, que vivem nas montanhas de lá de cima - quase na Áustria - e que nos contam do que é rapar frio a sério. Esperar tipicamente vinte graus negativos todos os anos não é coisa que conheçamos de todo… No escuro conforto da nossa cova, contaramos dias para o natal, passando as horas da ceia em frente ao fogo. No natal, voltámos ao Porto para passar as festas de quarentena com a Irene (mãe da Sara) e com a sua amiga Carla. Surpreenderam-nos com uma boa oferta de várias árvores e arbustos de fruto. A meio de vários tipos de framboesas e outras bagas, a mais peculiar de todas, e que nos tem surpreendido pelo vigor e pela resistência às geadas, foi a “macieira dos pássaros”; uma curiosa variedade, entre Malus pumila e Mauls sylvestris, que dá uns perinhos muito pequeninos, perfeitinhos, e que os pássaros adoram devorar, quando mais nada aguenta aquela cor nesta altura do ano. Assim como os pássaros, antes da hibernação, também nós vamos encontrando os últimos frutos que o terreno nos dá. É claro que as laranjas abundam nesta época, em que são precisamente mais necessárias, mas uma pessoa não pode passar a vida a engalfinhar citrinos… No lado mais balanceado das coisas nutritivas, já escassam as bolotas pelo chão. Entre nós e os javalis, os preciosos frutos dos nossos carvalhos vão-se consumindo. Muitas, têmo-las de molho, outras a fermentar (para que as taninas se acalmem); outras já estão moídas em farinha (com a qual o Rodrigo faz pães deliciosos), e agora estamos a experimentar fazer “café” com vários níveis de torragem diferentes. Vamos lá ver uma coisa, quando dizemos “café de bolota”, não é mesmo café! É mesmo bolota fermentada e torrada como se faz com o café! Bolota é bolota, não é café! Não tem cafeína, mas é possessora de uma abundância nutricional invejável, parecida com a da sua prima castanha (da família das fagáceas) mas ainda mais densa e complexa. Os romanos diziam que a bolota era o alimento dos povos invencíveis, sendo que tiveram sérios problemas em lidar com os persistentes povos galegos - aqueles tipos de sardas nas ventas e tranças nas barbas - que tinham a bolota como um dos seus alimentos principais! De setembro a outubro, as bolotas já caíam; caíam as que tinham bicho [Curculio elephas e outras espécies do género Cydia]. Cerca de metade das que apanhávamos tinham todas bicho, o que é normal. Estas espécies evoluíram em coexistência com as fagáceas (carvalhos, castanheiros, faias etc.), ou seja, os ciclos de reprodução das árvores e dos insectos estão sincronizados de forma harmoniosa. Os carvalhos produzem nunca menos bem por causa da presença destas pequenas larvas dentro dos seus frutos. Depois de terem comido bastante e de terem atingido a maturidade sexual, os gorgulhos saem da bolota - que já terá caído no chão - para se enterrarem, e lá esperarem pelo próximo ano. Isto acontece tudo antes de novembro, por isso, a partir daí, as bolotas vêm quase todas sem bicho; limpinhas, intocadas, relusentes que até parece que foram polidas! Isto, pois os bichinhos já trataram dos seus negócios todos e agora fica a árvore, sozinha, a produzir bolotas que, com alguma sorte, poderão um dia vir a ser grandes quercus centenários. Atenção, que já vi germinarem algumas bolotas que tinham sido furadas por bicho. Deram origem a carvalhos bem saudáveis. Em suma, o bicho não faz mal nenhum mal à produção! Aliás, até o pode melhorar nalguns aspetos... Aprendemos com o galego César Lema Costas que a bolota fica com propriedades nutricionais ainda mais interessantes se tiver (ou tiver sido visitada por) bicho. Basicamente, descem os açúcares e as gorduras, sobem as proteínas. A coisa fica muito próxima do perfil destes “novos” super-alimentos que aparecem nas revistas e na televisão a toda a hora ["Para emagrecer!", "Bons para a memoria!", "Contra o Covid!"]. O nosso café, ou mesmo a farinha de bolota têm, de facto, sido ligeiramente mais gabados por todos aqueles a quem oferecemos as nossas iguarias, precisamente nos tempos do bicho. Em chávenas pequeninas, aquela bebida escura, quente e saborosa, de textura aveludada e cremosa, a muitos faz lembrar caramelo, cacao e alfarroba, cevada da boa, chicória ou até mesmo café, daquele mesmo bom, adstringente que baste, nunca demasiado torrado, com uma acidez controlada e de oleosidade naturalmente aromática. O pão, que sempre arregala quem o mete na boca, tem trazido à mesa muitas boas conversas sobre quão bom é poder ter terra nas entrenhas. Quanto à integralidade dos nossos produtos, pedimos a todos os nossos amigos vegetarianos e vegan que compreendam que a naturza não quer ter nada a ver com segregação de espécies. Talvez mais que tudo, a escala importa... |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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Histórico
October 2024
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