diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Arranjar Caminhos
Mais uma vez, Novembro presenteou-nos com um belo verão de São Martinho, de céu bem limpo, que nos permitiu olhar bem para os carvalho e ver como já se preparam para ir dormir. As folhas - a maior parte ainda verdes - já tratam de translocar lentamente os nutrientes que sobram para as raízes. O caminho até casa é feito desta longa transformação que, dia a dia, tem cores diferentes para nos mostrar e nos surpreende com algumas bolotas tardias, entrando-nos sorrateiramente pelos cestos, já secas. A subir e a descer este caminho, vamos conversando um com o outro, e nem damos por ele, pois já o sabemos de cor. Fazemo-lo de noite, por vezes, sem tropeçar nem em pedras nem em raízes; apenas, por vezes, nos galhos que terão caído com recentes ventos mais veementes. Para nós, este caminho é uma questão elástica. Por vezes, nem pensamos nele, sendo-nos algo naturalmente inquestionável. Outras vezes, voltamos elipticamente à idea de o “arranjarmos” para que se apresente, mais decente, a visitantes menos aptos a cavalgar, como fazemos alegres, certos penedos inesperados. O Senhor Machado, que nos está a guiar a restauração do telhado, lembrou-se de nos trazer cá um amigo (que arranja estradas) para averiguar a situação. Pondo cara de caso, assustou-nos com um orçamento de milhares para deixar isto tudo “em condições”. Mas nós não queremos toneladas de alcatrão e bermas de estrada nacional a descer, monte abaixo, até à nossa porta! A outra opção, caso não queiramos arranjar o caminho, é arranjar um 4x4; uma máquina que suba tudo, só não trepe pinheiros a direito. E foi isso que fizemos: arranjámos um Nissan Patrol Turbo, uma máquina que nunca mais acaba! Com ele, fomos até Moinhos Del Rei, aqui perto, nas florestas de maior altitude a um passeio micológico, organizado todos os anos pelo Senhor Óscar. Que maradice… Cada cor, cada forma, cada sabor cada cheiro… Com calma, passo a passo, ano após ano, aprenderemos cada vez mais sobre este mundo fantástico dos fungos que frutificam à superfície. Daqui a nada começaremos a apanha das azeitonas. Antes disso, aproveitamos para preparar alguns produtos daqui da terra: o nosso tónico herbal à estilo coreano, um xarope de rosa canina que já testámos no ano passado e correu muito bem, azeitona curada (já do ano passado também, agora de sabor mais intenso mas de consistência igualmente segura, que é o que se quer; nada de molezas nojentas), infusão de bolota e mais algumas coisitas que virão.
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Em agosto, recebemos muitas visitas. Da Madeira, vieram os pais do Rodrigo - o Rui e a Helena - acompanhados da Mariana (a irmã do Rodrigo) e do seu namorado Filipe. Como bons madeirenses que são, mal pisaram terra landrina, aperceberam-se de que havia cortes na topografia do terreno que indicavam a presença remota de um qualquer curso de água; agora quase impercetível. Em instantes, arregaçam as mangas, dobraram as bordas das calças ao nível dos joelhos, e desataram a abrir uma enorme levada! E quanta água! O terreno já não via aqueles correntes metros cúbicos havia muito, muito tempo. Num abrir e fechar de olhos, os campos bebiam, da nascente mais próxima, uma água límpida e verdadeiramente revitalizante. E sentia-se mesmo, pela pele, a energia entrando, de baixo para cima, entranhando-se em nós. Com os ilhéus, amantes da queda potencial e sedentos de irrigação, também veio a mãe da Sara - a Irene - para se juntar à festa e ajudar na documentação audiovisual. Veio do Porto no seu próprio carro, enquanto que os outros já tinham deixado Lisboa um dia antes, espremidos num carro alugado qualquer. Para festejar os quinhentos metros de levada que se haviam correr abertos em apenas dois dias, fomos todos festejar à casa de pasto mais famosa da região: O Nariz do Mundo! É um daqueles sítios em que se come quantidades inimagináveis e abusivas de carne, de pão, de vinho... e há mel e água ardente agrícola a jorrar de cântaros e bicas, e tudo e tudo é tão tanto que uma pessoa enfarda até enfartar, e ou rebenta, ou vai a rebolar pelos montes abaixo, de Cambeses para Cabeceiras. No fim do jantar, vieram deixar-nos ao terreno, antes de irem dormir a uma casa noutra aldeia que tinham alugado todos juntos. Como eram carros a mais, a Irene deixara o dela, mesmo à boca do caminho de terra que vai dar ao nosso terreno. Assim, sempre se poupava alguma gasolina! Descemos, caminho abaixo, de lanterna de telemóvel nas mãos, tremendo, fosse do frio do sereno, fosse de algum receio que ainda tínhamos; o terreno ainda não nos era a coisa mais familiar de todas... A meio daquele quilómetro a pé, batendo de pés em pedras e troncos, atabalhoadamente, tentanto enxergar o que se passava a poucos metros adiante da ponta do nariz, fomos surpreendidos com uns guinchos, tão estridentes, quanto fortes, e quão estranhos! Que coisa medonha, teria sido aquilo que, durante uns poucos segundos nos petrificou completamente. O resto do caminho foi feito em hiper foco total, tudo era gesto, som e potencial ameaça, as ervas, as gotas, os insectos tudo parecia estar a mil, aumentado, atormentadoramente vívido e presente! Bem, não aconteceu nada, e lá fomos dormir para a tenda enrroscados que nem uns techugos. De cansados, nem foi difícil ignorar tal evento, tão medonho e insólito. Um dragão ou lá o que teria sido, gritando, no meio da noite, num vale recôndito enquanto dois humanos desciam a pé com uma luzinha elétrica nas mãos... No dia seguinte, liga-nos o Filipe de manhã, com tom de caso, dizendo: “camarada, o carro da Irene suicidou-se”. Era um Volvo que, embora tivesse servido a dona muito bem, durante muitos anos, já estava a dar de si, e a ameaçar parar numa qualquer estrada, num dia qualquer, por uma razão qualquer, e aí ficar, sem dar explicações a ninguém. Mas ninguém imaginaria que o fim fosse tão dramático. O frio da noite forçara os travões dilatados pela descida cautelosa a cencolherem-se; a diminuírem de volume, pouco a pouco, tanto tanto, que foi o suficiente até o senhor volvo deslizar sorrateiramente pela rocha a baixo até ir apenas parar de focinho pregado num grande penedo, setenta metros abaixo… Nunca nos teria ocorrido, por sermos parvos ou por estarmos estafados de termos sido afincados levadeiros de sol a sol, que aquela guincharia da noite passada fora, na verdade, o carro da mãe da Sara, abicando-se da cocha a baixo... Fora o trauma, tal insólito evento não poderia ter sido o melhor cartão de visitas. No dia seguinte, tínhamos dez pessoas da aldeia mais próxima (Eiró) a ajudarem-nos a retirar aquele monte de sucata do monte. O reboque, com toda a oficialidade que lhe confere o protocolo normal, neste caso, não ajudou nem um pouco. Ao averiguar a gravidade da situação, de cima, da estrada, o reboqueiro só nos desejou boa sorte, ou com a multa que teríamos de pagar se deixássemos o carro ali, ou com o preço do helicóptero… e foi-se embora. Quem nos salvou o dia? As pessoas de Eiró. Engenhosos e generosos, arranjaram dois tratores, um puxando o outro, com calhas de andaimes e mais umas parafernálias para deixar o serviço pronto em condições. Que prontidão, que distreza! Tudo se despachou numas meras horas, e houve muita conversa, ainda que às vezes embebida de nervos miúdinhos pelo meio. Depois da loucura do carro, e de ter ficado a Irene a esconjurar males à Landra durante uns tempos, vieram, desta vez de Londres, a Mariana e o seu namorado Sam. O Sam, como grande cheff que é, perguntou-nos logo: “onde é que cozinham?” seguindo com "o que é que vamos preparar hoje?". Nós ainda não cozinhávamos… Comíamos, ou a comida pré-cozida que trazíamos do Porto, ou coisas cruas e pronto. O choque que foi, a ausência de fogo para um cheff bem educado... Em minutos, montou um fogareiro de pedras e telhas velhas e preparou-nos um arroz de tomate malandro com pimentos padron. Que maravilha! Na landra já havia água corrente (ainda que no chão) e já se cozinhava (ainda que na chama viva, e ficassem algumas crostas, um pouco esturricadas de mais, mas era o gosto do momento!) |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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Histórico
October 2024
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