diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Reencarnação diplomática
No início do mês, vieram-nos visitar o João Costa e a Lena. Com eles vieram também o Telmo a Joana e o Gipsy. Montámos o estaminé na nossa eira e fizemos aquela típica patuscada à portuguesa com sandes de bifana e tudo. A pequena diferença é que era tudo vegan! Quer dizer, o Rodrigo tinha-se esquecido deste pequeno detalhe e, no dia anterior, adicionou - num gesto improvisado - uma rodelinha de chouriça de sangue ao arroz, só para dar sabor… Muita conversa da boa dilui, sem problemas, uma bronca destas. Foi um dia bem passado, portanto, passeando pelo terreno e fazendo, em conjunto, alguns trabalhos circunstanciais. Por exemplo, uma das levadas principais estava a perder alguma água. Reparámo-la em minutos, e ainda houve tempo para todos conhecerem a Dona Leonor, que andava pelo caminho à procura de um dos seus cavalos, que tinha fugido caminho a Cambeses… É sempre para lá que ele vai quando escapa... Falando de água, foi só ao fim de dez meses, que encontrámos a nascente que faltava. Viva! A água andava perdida, escapando por entre pequenas fissuras e rachas, que há por todo o lado no emaranhado rochoso destas serras. Nos últimos tempos, tem deslizado, todinha, monte abaixo, inevitavelmente acabando por ir bater ao rio, sem que antes servisse à Landra uma gota que fosse. Nesta altura do ano, os dias, cada vez mais longos, trazem consigo, não raras as vezes, aquele sol alto e reto que, com uma eminente força tórrida, pré-estival, já ameaça algumas ervas com uma sede imposta. Para toda a nossa conveniência, descobriu-se que, ao longo de todo o caminho que nos leva até casa, corre, paralelamente, uma levada, já muito antiga, feita em pedras do tamanho daquelas que só uma comunidade inteira conseguiu mexer, e colocar no sítio! Estava completamente coberta com silvado, giestas, tojos e algumas árvores de água (ulmeiros, amieiros, salgueiros, cerdeiras, frângulas, rhamnus, e umas macieiras bravas aqui e alí). Com alguma pena, tivemos de desbravar caminho - passo a passo, palmo a palmo - até dar de caras com as muralhas espessas de um açude - com muitos anos também - que recolhe e que guia a água de outras três nascentes. É essa a água que teremos nas torneiras não tarda nada, mas para já, há que desenrolar, conectar e enterrar quatrocentos metros de tubo… De piqueiretas e pás na mão, o trabalho cá vai andando. O que também nos está mesmo à mão (ou melhor: aos pés) são as nossas bicicletas! Com elas, temos ido regularmente (uma vez por semana) à vila. Damos sempre um pulo ao mercado para ir buscar o que - ainda! - não produzimos, e passamos algum tempo, por volta do almoço, no Café Cabeceirense - dos animados irmãos João e Francisco - para usar um bocadinho da sua internet. Os afazeres administrativos ainda nos perseguem (e preenchem) as segundas-feiras que, por acaso, também são os dias em que damos aulas de música online aos filhos de colegas e amigos, uns em Portugal; outros em no estrangeiro. Relacionamentos digitais à parte, também temos vindo a conhecer mais e mais feirantes locais, cada um com as suas produções caseiras, seja de enchidos, de padaria e pastelaria, de fruta e hortaliças ou mesmo de ferramentas manuais, com quem já temos alguma confiança para inspirar uns descontos jeitosos aqui e alí. Costumamos frequentar a banca do Carlos e da Karina que só têm produtos biológicos de alta qualidade. Pedem-nos sempre que sejamos rijos e críticos com as coisas que nos passam para as mãos e que, eventualmente, meteremos na boca... Querem que lhes digamos honestamente sempre que alguma coisa não estiver em condições. Até agora não há razões de queixa! Venderam-nos um limoeiro bravo - propagado por alporquia - que conseguiu chegar à primavera triunfante, após um inverno particularmente rigoroso. Tem sido uma missão complicada, esta de se encontrar limoeiros à venda… Aparentemente andam todos com uma doença qualquer que lhes rebenta as folhas todas; uma verdadeira desgraça. Porém, nunca vimos, com os nossos próprios olhos, a tal doença nas nossas laranjeiras, mas a verdade é que em nenhum horto se vê limoeiros à venda; e todos dizem com ar de caso “estão proibidos!”. Devemos ter comprado um limoeiro ilegal - um bandido, portanto - rijo mas honrado pela sua avidez e sagacidade; por ter não só suportado as geadas deste tão maldito ano, mas por ter aguentado, nos braços, um belo limãozinho, como se faz com um bebé no meio de um naufrágio. Agora já tem muitas raízes e vive feliz no patamar das laranjeiras! Antes de falarmos de outros feirantes, há que dizer que a razão pela qual o Carlos e a Karina decidiram praticar agricultura biológica está relacionada com o seu filho, quem tem leucemia. As circunstâncias da vida propuseram-lhes um cuidado mais atento a tudo o que lhes entra pelo corpo adentro. Às segundas, no mercado, está lá sempre a senhora Conceição, enfiada debaixo de um consorte de panos (para proteger a mercadoria do sol direto). Aqueles lençóis todos dão, de facto, um ar de tenda cigana a tudo aquilo e, como ficam mesmo muito baixos, detraem alguns compradores de se aproximarem o suficiente para perceberem o que é que deveras lá se vende. Lá por baixo, a senhora vende as magníficas broas de centeio e de milho, que faz à moda antiga. Pesam no mínimo um quilo e tal cada e crescem com fermento natural: “uma bolinha do próprio miolo basta” diz ela, e acrescenta “mas tem de se deixar durante duas noites pelo menos!”. Quem diria que, após ter passado por um inferno de quase trezentos graus, a massa no interior do pão continuaria viva! Essa é uma forma de se manter o fermento de um pão para o outro sem termos de andar sempre com aquele frasco explosivo de massa-mãe atrás. À parte da porporção, que tem de ser enorme, para que isto funcione, não é forma melhor nem pior, é diferente. Assim são as broas do norte. No mercado também há a senhora Fernanda, de Chacim, que tem os melhores enchidos da zona. Também tem mel, mais ao cuidado do marido, mas os enchidos é que lhe verificam e reinscrevem semanalmente a fama. É ela quem os prepara, do início ao fim, todos em casa, com animais seus, sem certificados nem nada, e corre sempre bem! Já nos convidou várias vezes a passarmos lá um dia, quando quisermos, para aprendermos como se faz. Assim o faremos com muito gosto, quando a altura vier. Ir a Chacim, ainda que razoavelmente próximo daqui, ainda é uma excursão que se tem de planear com cabeça. Numa destas vezes, o Rodrigo meteu conversa com ela, mas não foi sobre enchidos, nem sobre mel. Foi em torno do assunto da lã, que a conversa magnetizou um pequeno grupo de senhoras de idade e de outros quantos feirantes. Agora, que é época de tosquias, temos passado mais vezes por Eiró para ver quem terá lã para nos dar. A primeira quantidade foi-nos oferecida pela Nela e pela sua família. Vivem todos numa grande casa - rosa forte, garrido - junto à estrada nacional que vai daqui para para os lados de Monte-Alegre. Têm umas vinte e cinco ovelhas nuns campos aqui perto, e foi de bom grado que nos quiseram passar dez sacas cheíssimas de lã para as mãos, e para as costas! Para eles, tem sido um fardo acrescido, ter de arder toda aquela fibra infindável, após as tosquias. É isso que fazem com a lã, e não é só a Nela e as outras pessoas daqui que o fazem, é mesmo em todo o país (e provavelmente além) que isto se passa. Ardem-na toda como quem arde notas de cinquenta. A lã perdeu o seu valor nos mercados - isso é um facto - mas nada invalida, nem abate, o verdadeiro valor económico, tecnológico e cultural que ainda tem e sempre terá. A Ana - filha da Nela - ajudou-nos a carregar as dez valentes sacas de lã às costas e fitou-nos a descer, que nem burros de carga, pelo caminho, não sem alguma incredulidade. Estarmos interessados em lã é uma coisa; não termos um veículo com tração às quatro rodas para dar cabo destes trabalhos já é outra. As duas coisas juntas já são dignas de uma certa estranheza. Contudo, no final de contas, todos gostam da nossa intenção de valorizar o que é local e, por isso, apoiam-nos alegres nas nossas aventuras. Foi a primeira vez que sentimos a lã pura na pele. Não foram os poucos cagalhões secos, encrostados e perdidos naquelas nuvens fibrosas, nem foi arranharmo-nos com as hastes de cardos e de tojos secos que nos impressionaram. Foi toda aquela oleosidade, e o cheiro, tão cheio de caráter! Voltavam a arder as feridas e os cortes das mãos e dos braços, o que não sabemos se é bom se é ou mau, mas sabemos que é valiosa - essa mesma oleosidade natural - na resistência deste material contra o fogo, face à agua, e às famosas traças! Vamos ter de a lavar e cardar com cuidado, não vá a lá ficar tratada de mais, como a que se vende por aí, completamente intoxicada de borax e de outras coisas menos naturais e bem piores… Quem nos ensinou isto tudo, foi o artista Mikhail Karikis, que agora vive em Portugal, mas que é grego, e o seu pai era pastor, lá nas montanhas Gregas, bem a norte. Ser pastor, naquela altura, naquela região, envolvia ter de dormir, por vezes, nas copas das árvores para se proteger dos lobos. Ele lá sabia das suas matérias lanzudas. Hoje, aprendemos nós o que podemos, com o conhecimento de causa dos outros. É por isso que metemos conversa fiada com as pessoas (nem sempre as mais “antigas”) que suspeitamos ainda serem detentores de um segredo qualquer da história. Vamos perguntando e puxando por mais e mais detalhes de tudo aquilo que não conhecemos. Assim, vamos reinventando, pelas nossas próprias mãos, toda uma tradição que se perde se não for praticada, seguida e refeita, sempre de novo. Num museu, tudo é para morrer cristalizado em memória de um passado qualquer. Até as coisas mortas, se formos ver bem o que se passa, não estão mortas de facto. Estão somente à espera de viverem outra vez. Os cadáveres dos animais mortos também se decompõem, e toda aquela matéria orgânica passa a integrar os corpos de outras coisas vivas. Reincorporar-se-ão mais uma vez na rede da vida. Se não for agora, será um dia, por certo. Cá está a reencarnação, tão honesta e aberta para todos os céticos, que são incapazes de imaginações mais interessantes do que aquelas as da engenharia moderna. Nesta matéria - numa corda sensível entre a engenharia e a encarnação - temos-nos vindo a aperceber de uma realidade muito peculiar, e um tanto quando sórdida, que se passa nos nossos terrenos. Hoje, cada vez menos, os animais morrem nas terras onde viveram. Isto não é, nem de perto, falar das condições de vida desses mesmos animais. Muitos nem viram nem pisaram terra de todo! Essa será outra conversa. De qualquer forma, os animais, para que morram de forma legal, são retirados para sítios de abate; instituições da morte organizada. Pouca gente terá imaginado, na altura em que as “boas ideias” foram tidas sobre aumentar a produção de carne ao mesmo tempo que se melhorariam as condições sanitárias desta indústria (pouca importância se dá à subjetividade do animal em sí), que um resultado direto desta tramóia toda seria começarmos a notar carências misteriosas de fosfato de cálcio nos nossos solos… A boa floração e frutificação das nossas plantas, assim como a produção de sementes de qualidade dependem tremendamente da disponibilidade destes nutrientes na terra. Quando, para "resolver" este problema, se começa a enfiar fertilizantes sintéticos (ou mesmo dos inorgânicos, naturais, extraídos mecanicamente) pela terra a dentro, então aí é que estamos a entrar de cabeça num valente berbicacho. Aqui na Landra, ainda não temos animais de porte considerável, nem os teremos durante alguns anos, mas sabemos que é importante a presença animal - especialmente de mamíferos herbívoros - por perto, se quisermos que a nossa terra seja saudável da forma o mais natural possível. Isto não se restringe ao estrume que as vaquinhas e os cavalos deixam por todo o lado, adubando os solos. Estamos mesmo a falar de vectores de polinização, mas também de animais mortos; restos de carcaças, de ossos, de cartilhagens e tutanos, afundando-se pelos solos no canto dos tempos. Seguindo as práticas de agricultura natural coreana, sabemos o que fazer para remediar a situação a curto prazo e, por isso, num dia destes, o Rodrigo foi a um talho local pedir que nos dessem todos os restos que não fossem utilizar para mais nada. O que fazemos com eles? Partimo-los aos pedacinhos, mandamo-los, no fim do jantar, para dentro da salamandra em brasas e fica tudo carbonizado; "PALEOBLACK: PRETO MAIS PRETO NÃO HÁ!!!" De seguida, é só diluir tudo em vinagres ou outros ácidos orgânicos, durante umas semanas e voilà! Pronto a utilizar nas regas, diluído de um para mil! Estes animais, que não comemos, acabarão por ser a razão pela qual as nossas laranjas serão tão doces, e as nossas nozes não apodrecerão antes do tempo com uma casca rachada por falta de cálcio. De forma semelhante, todas as nossas cucurbitas (família das abóboras, courgettes, melancias, melões etc.) estão a crescer com uma ajuda extra de compostos líquidos feitos com base nos corpos esmagados e fermentados das briónias (Bryonia dioica: um tipo expontâneo e extremamente vigoroso de cucurbita). Uma coisa que não podemos comer em demasia - por ser um tanto quanto venenosa e, por dar, sinceramente, frutos demasiado pequenos para que a maior parte de nós os conheça de todo - acaba por ser a rampa de lançamento para as nossas deliciosas e nutritivas abóboras. Agradecemos a toda a vida que acaba por ser a nossa - ou melhor - que continua, antes de ser outra, sendo-nos. Entretanto, este ano tem sido cheio de convites e de propostas vindas daquele lado do mundo em que a cultura é mais objeto do que processo; ou pior, mais o culto dos fazedores do que da coisa que se faz. Amarguras artísticas de lado, estes convites são, obviamente bem vindos, especialmente quando nos pagam decentemente (ou quase) pelo trabalho que fazemos. Desta vez, várias pessoas e instituições - simultaneamente mas independentemente - chamaram pela Sara; que nos presenteasse com trabalhos artísticos - novos, mas também antigos, refeitos - em vários momentos e ocasiões deste ano. E pronto, com a múltipla responsabilidade depositada sobre os seus ombros, lá foi a Sara trabalhar para o Porto pois, na Landra, ainda não há condições para a produção de arte contemporânea com uma forte componente de trabalho digital… Ficou o Rodrigo a servir de caseiro e a avançar trabalhos variados. Num domingo, levantou-se cedo que baste para ir levar algumas azeitonas à Dona Sameiro, em Eiró. Tínhamos lá ido os dois, em Fevereiro, quando estávamos muito desanimados com a história dos caçadores; aqueles que, sem permissão, nos entravam pelo terreno adentro para ir aos javalis e, no processo, nos cortavam recorrentemente as vedações, postas precisamente para manter os javalis, mas também os cavalos do lado de fora… Já sem ideias do que fazer quanto àquela situação tramada - o inverno a apertar-nos o humor contra as paredes do fundo - subimos a Eiró para falar com alguém, com quem quer que fosse para - como nos disse o José Oliveira - fazermos política popular na ágora local. A nossa relação diplomática com os habitantes locais já conta com alguns grossos sucessos. Em troca de lã, de informação e de mais contactos, sempre vamos oferecendo azeitonas (aquelas com uma cura especial coreana) e café de bolota (que não é, mas que sempre é recebido como se fosse coisa nova, um conceito inovador!). Dessa vez, por ser domingo, o filho desta senhora estavam em casa. Chama-se José Manuel e é professor de engenharia industrial no Instituto Superior de Engenharia do Porto. O José nunca viveu noutro sítio que não fosse em Eiró. Nem duas horas dentro de um carro para lá e para cá, nas já muitas vezes batidas estradas, o fazem mudar de ideias. Ninguém diria, mas aqui mesmo nesta aldeia - em que não vivem mais de trinta pessoas - o José tem todo um estúdio de máquinas e robôs que produzem mais máquinas e mais robôs, para além de simples peças para os seus alunos, quando o ISEP não tem capacidade de as fabricar, ou mesmo quando as empresas em que esses mesmo alunos estagiam também não conseguem fazer aquilo que deveriam. Consegue-se aqui em Eiró; a inesperada ponta de lança do design industrial Português. Com Maio pelos fins, são mais frequentes os calores e, o trabalho, quando pede mais força, também pede mais água. Assim se lavam e refrescam os rostos suados, salgados e peguentos. Mas nem sempre a água resolve tudo. Num dia, esteve tanto sol, tanto calor, que Maio parecia Junho. O Rodrigo, sozinho no campo, a trabalhar a duzentos à hora, começou a ofegar tanto, com rios nojentos de poeira e sal a descerem-lhe pela nuca abaixo, que decidiu de rompante que iria desbastar a sua própria lã. Com que então, estamos na altura das tosquias. Fê-lo sozinho, e foi mesmo sem ver nada, pois não há espelhos na Landra (e estava de noite). O estilo é o táctil e é o do arejamento funcional. É o que for, se servir para o que serve. Na natureza, só quando a água está parada, desoxigenando-se lentamente, é que podemos dar uma de Narciso. A gadelha, entretanto, não foi ao fogo, foi parar ao composto, sendo que não tem a mesma qualidade da lã de ovelha e, por isso, não servirá de grande coisa para fabricar feltro bruto para isolar o interior da nossa casa.
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Abril é expansão. Os dias alargam-se, sendo o maior que podem, e lá se deita o sol, esticando-se, todos os fins de tarde, a ver se arranha as escarpas, cada vez mais a norte, lá para as Serras da Cabreira. Abril águas mil. Assim o dizem também, não é? Não podemos dizer que as águas tenham sido assim tantas, para que se justifique à risca o ditado, mas foram as que bastaram, equilibradamente regando os campos de manhã e de noite, e enchendo-nos os bidões com água da melhor que há: de PH neutro; com uma infinitude de leveduras selvagens; algumas algas e bactérias fotossintéticas (que vieram dos telhados musgosos); e muita vontade de conhecer a terra. A composição topográfica deste país - com as serras que, bem altas, o cortam ao meio - oferece-nos uma grande abundância de água. Uma água que, por cair aqui, não cai noutros sítios, infelizmente. Uma abundância que, por vezes, é de gestão matreira. É que esta terra brota água por todos os lados e, ainda que bem drenada, a quantidade é tanta, que as comunidades de plantas organizam-se em torno de uma extensa rede de pequenas máfias aquáticas, em que dominam as nossas favoritas - as angélicas - por entre as várias mentas, os vigorosos junquinhos e uma data de lamiáceas. Mesmo com tanta água para encaminhar, temos estado cada vez mais atentos aos milagres da precipitação. Quando o ar se sente húmido, quando as nuvens pesam, quando nos chega à pele a mais pequenina das gotas ou, vá lá, quando de rompante, começa mesmo a chover a potes, desatamos logo a correr para a recolha! Fazemos isto pois aqui, no noroeste ibérico, extensamente coberto por umbrisolos ácidos, a água terrestre acaba, ela mesma, por ser também ácida. Já a água da chuva - mais neutra e menos mineralizada - ajuda sempre a manter tudo no lugar. A longo prazo, os solos livram-se de sofrer com problemáticas concentrações salinas, e sempre deixam de ter azia. A chuva é um bem que cai do céu. Desperdiçá-la é das maiores parvoíces de sempre… Por acaso, ou não, quando viemos para cá de bicicleta - há umas semanas atrás - deu um dia perfeito; claro, cristalino, sem uma pinga que fosse, nem uma nuvem à vista. É isso mesmo! Decidimos trazer as bicicletas para cá para a Landra. Assim, facilitam-se as idas à vila, que fica ainda a uma meia hora daqui. Sempre que contamos esta estória a alguém, saem disparados os comentários: “ai que loucura!”; ou o típico “vocês são passados da cabeça”; ou ainda o mais insólito (ainda assim ocorrente) “mas isso é impossível!”. Bem, comparado com uma viagem que o Rodrigo fez, uma vez, de Londres a Colónia (na Alemanha), e da Colónia, de volta, mas para o Porto, esta - do Porto a Cabeceiras - não foi nada; foi como água. Essa viagem pela Europa foi cumprida, em tom de epopeia, sem bomba de ar, sem remendos, sem ferramentas, nem câmara de ar suplente, nem GPS, nem mapas, nem roupa suficiente, nem nada. Nem um problema [a não ser uma sede danada que, em pleno agosto, quase o matou no nordeste francês entre campos secos e maltratados, e uma sucessão de pequenas vilas abandonadas]. Desta vez, bem precavidos e com receio do que pudesse vir a acontecer pelo caminho, viemos carregados com um arsenal de equipamentos, e pronto, lá tivemos um furo a meio do caminho para dar uso às ferramentas! Estávamos mesmo a pedir… Também viemos sem mapas nem GPS. Viemos a seguir o sol, ou melhor, a seguir a nossa própria sombra. Saímos do Porto ao meio-dia, o que quer dizer que o sol estava a sul; as sombras a norte, portanto. Ao ir-se pondo o sol, as nossas próprias silhuetas - bem desenhadas no chão, por se fazer um dia incrível - guiavam-nos sempre, muito certas, em direção a Cabeceiras. Mas esta viagem não foi assim tão suave! Calma… Para além do furo (que o Rodrigo reparou num abrir e fechar de olhos, ao estilo fórmula um), chegados a Guimarães, a Sara achava que já não tinha joelhos, mas ainda nos faltava mais de metade do caminho. A chegar a Fafe, entrámos sem querer numa via rápida [não digam nada à polícia!] e, ao demorarmos mais do que tínhamos planeado, o sol escondia-se por detrás das serras. A verdade é que já havia pouca luz na estrada, e não nos servia a lua, pois estávamos na sua fase errada… A páginas tantas, estávamos em montanhas que nunca mais paravam de subir e que já nem de bicicleta se faziam. Estávamos agora a pé, sem sol, e com algum medo (não infundado), de sermos abordados por uma matilha de lobos. O cansaço e a altitude, crescentes, combinavam-se na forma de incrementais calafrios, desmoralizantes. Nas grandes alturas, em que ofegar é a única forma de respirar, e as nuvens, abaixo dos nossos pés, nos faziam acreditar que aquela subida nunca mais teria fim, entrávamos, inesperadamente, pela malha urbana adentro, que as Terras de Basto exibiam, mesmo ainda nos montes, a escorrer, caminho a baixo, via Cabeceiras. Os travões da bicicleta do Rodrigo, que foram comprados numa loja de ciclismo com mais de cem anos na Maia, são vintage e, talvez por isso, guincham que é uma maravilha… A descida foi pontuada com longas notas intermitentes, bem enervantes, de borracha rija e alumínio barato. No fim de nove pedalantes horas, dormimos que nem pedras, na nossa grutinha de pedra; e foi a última vez. Há uns dias, a Catarina - amiga da Sara - veio-nos visitar com os pais. Vieram ver o terreno, que não fica nada longe de uma casa que têm em Chacim, a cinco minutos de bicicleta daqui. Já tinham ouvido falar de que andamos a trabalhar muito, e de que estava tudo a ficar bem bonito, e queriam averiguar a situação. Ao chegarem cá em baixo, começaram-se logo a despir. A temperatura é, de facto, bem diferente daquela que lhes gelava os couros durante o inverno, aos setecentos metros de altitude. Aqui, aos trezentos, e num vale bem mais arborizado do que as serras lá para cima, as coisas são mais meigas e gentis. Uma geada que se preze, fica o dia todo a queimar as verduras e a fazer cair as flores dos antecipados Prunus, coitados. Aqui, um friozinho que se veja azulado durante as primeiras horas da manhã, não dura mais que isso: algumas horas (e só de manhã) nalguns dias do ano apenas, e vai-se sempre antes que o sol beije as faces de todas as coisas verdes. Portanto, estamos numa liga mais leve, no que toca a enfrentar a firmeza do famoso “inverno nortenho”. Isto para dizer o quê? Que os pais da Catarina - um engenheiro e uma arquiteta - ao verem a casa; ao entrarem nela, e ao efetivamente começarem a pular sobre o soalho (para provar que estava de não se morrer nele), perguntaram-nos, surpreendidos, se tínhamos mesmo a certeza de que queríamos a continuar a viver numa furna… Eles achavam que o velho soalho da casa principal, embora mais usado que um hábito papal quinhentista, estava em muito bom estado e serviria, não só para suster o peso dos quatro cavalos que cá viveram, mas o nosso próprio e o das nossas muito minguadas tralhas. E foi assim que mudámos para a nova (velha, e verdadeira) casa. Em dois dias, abandonámos o palheiro, que tinha albergado umas quantas vacas. Passávamos, então, a ser como pessoas, no Carvalhal. Agora, com duas janelas para o mundo [o nosso habitáculo anterior não tinha abertura alguma], acordamos todos os dias com os avanços milagrosos da primavera. As giestas estão em flor, com aquele manto amarelo, embriagante, de cheiro doce tão sedutor; tudo cresce, espiga, refila, desponta e abunda; apenas os castanheiros, mais estivais, aguentam os seus botões, firmes, seguros, até que cheguem os dias mais quentes. No barraco em que dormimos até agora, as portas nem fechavam e faltavam-lhes grandes pedaços de madeira que, de podre, já se tinha convertido em solo a favor das silvas e dos fetos. Agora, para além de janelas, também temos portas (ainda que apenas uma tranque por dentro e faltem alguns vidros às janelas). Estas são as condições em que vivemos. Quando as descrevemos aos nossos conterrâneos, aqui em frente, na aldeia de Eiró, metade acha que somos os maiores, metade acha que somos um bocadinho parvos. A senhora Geralda - a tasqueira de cá da zona - diz-nos que não temos necessidade de comer as coisas que comemos; que em vez de comermos “ervas do chão”, deveríamos plantar couves e batatas. De facto, temos algumas couves galegas, que são tão deliciosas, e as batatas, daqui a nada, estão de se papar num bom caldo verde, mas é que nós gostamos mesmo das nossas magníficas “ervas daninhas”: temos sarralhas bem tenrinhas, e alguns dentes de leão aqui e alí, temos urtigas e lâmios (comicamente conhecidos por “chupa pitos”); as primaveras já nos alimentam desde janeiro; há labaças e angélcias mesmo à frente de casa; todos os muros ostentam os seus umbigos de vénus; as ajugas aparecem pelos prados lá em baixo fazendo frente às variedades de menta que persistiram o inverno todo, já se cheiram os orégãos frescos de longe e há azedas espalhadas por aí… O que não nos falta é comida por todo o lado. Sabemos que estas espécies são incrivelmente nutritivas e que nos fazem muitíssimo bem! As outras pessoas já quase nem as reconhecem, pois há muito que as expulsaram dos seus terrenos, infelizmente. Mesmo com as pequenas grandes diferenças a separar a nossa forma de vida da dos outros, temos gostado muito de visitar Eiró. Até muito recentemente, estávamos tão embrenhados no trabalho diário, que nem tínhamos tido grande tempo para lá irmos antes que anoitecesse. Agora, que os dias já ganharam um tamanho decente, sempre nos sobram uma ou duas horas para atravessarmos o rio mais belo que já se viu e convivermos um pouco com as pessoas que já cá viveram vidas inteiras. Cada um vai-nos contando a sua própria estória e, aos poucos, há toda uma figura que se monta daquilo que terá sido um passado áureo aqui da Quinta do Carvalhal. Muitos dizem-nos que “aquilo é que era um quinta!”; que produzia um montão de azeite e que as pipas de vinho não paravam de rolar caminho a baixo; dizem-nos que a fruta nunca faltava; que as laranjas eram as melhores, e que havia maçãs de cá da zona que a todos faziam salivar em anticipação. Hoje, após trinta anos de "abandono", esta terra chama-se Landra e, pelas nossas mãos, vai dando passos numa direção que muitos revêem como aquilo que esta terra já foi: um verdadeiro jardim, cheio de vida e de comida. |
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Sara Rodrigues Categorias
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May 2024
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