diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Formas de vida
Abril é expansão. Os dias alargam-se, sendo o maior que podem, e lá se deita o sol, esticando-se, todos os fins de tarde, a ver se arranha as escarpas, cada vez mais a norte, lá para as Serras da Cabreira. Abril águas mil. Assim o dizem também, não é? Não podemos dizer que as águas tenham sido assim tantas, para que se justifique à risca o ditado, mas foram as que bastaram, equilibradamente regando os campos de manhã e de noite, e enchendo-nos os bidões com água da melhor que há: de PH neutro; com uma infinitude de leveduras selvagens; algumas algas e bactérias fotossintéticas (que vieram dos telhados musgosos); e muita vontade de conhecer a terra. A composição topográfica deste país - com as serras que, bem altas, o cortam ao meio - oferece-nos uma grande abundância de água. Uma água que, por cair aqui, não cai noutros sítios, infelizmente. Uma abundância que, por vezes, é de gestão matreira. É que esta terra brota água por todos os lados e, ainda que bem drenada, a quantidade é tanta, que as comunidades de plantas organizam-se em torno de uma extensa rede de pequenas máfias aquáticas, em que dominam as nossas favoritas - as angélicas - por entre as várias mentas, os vigorosos junquinhos e uma data de lamiáceas. Mesmo com tanta água para encaminhar, temos estado cada vez mais atentos aos milagres da precipitação. Quando o ar se sente húmido, quando as nuvens pesam, quando nos chega à pele a mais pequenina das gotas ou, vá lá, quando de rompante, começa mesmo a chover a potes, desatamos logo a correr para a recolha! Fazemos isto pois aqui, no noroeste ibérico, extensamente coberto por umbrisolos ácidos, a água terrestre acaba, ela mesma, por ser também ácida. Já a água da chuva - mais neutra e menos mineralizada - ajuda sempre a manter tudo no lugar. A longo prazo, os solos livram-se de sofrer com problemáticas concentrações salinas, e sempre deixam de ter azia. A chuva é um bem que cai do céu. Desperdiçá-la é das maiores parvoíces de sempre… Por acaso, ou não, quando viemos para cá de bicicleta - há umas semanas atrás - deu um dia perfeito; claro, cristalino, sem uma pinga que fosse, nem uma nuvem à vista. É isso mesmo! Decidimos trazer as bicicletas para cá para a Landra. Assim, facilitam-se as idas à vila, que fica ainda a uma meia hora daqui. Sempre que contamos esta estória a alguém, saem disparados os comentários: “ai que loucura!”; ou o típico “vocês são passados da cabeça”; ou ainda o mais insólito (ainda assim ocorrente) “mas isso é impossível!”. Bem, comparado com uma viagem que o Rodrigo fez, uma vez, de Londres a Colónia (na Alemanha), e da Colónia, de volta, mas para o Porto, esta - do Porto a Cabeceiras - não foi nada; foi como água. Essa viagem pela Europa foi cumprida, em tom de epopeia, sem bomba de ar, sem remendos, sem ferramentas, nem câmara de ar suplente, nem GPS, nem mapas, nem roupa suficiente, nem nada. Nem um problema [a não ser uma sede danada que, em pleno agosto, quase o matou no nordeste francês entre campos secos e maltratados, e uma sucessão de pequenas vilas abandonadas]. Desta vez, bem precavidos e com receio do que pudesse vir a acontecer pelo caminho, viemos carregados com um arsenal de equipamentos, e pronto, lá tivemos um furo a meio do caminho para dar uso às ferramentas! Estávamos mesmo a pedir… Também viemos sem mapas nem GPS. Viemos a seguir o sol, ou melhor, a seguir a nossa própria sombra. Saímos do Porto ao meio-dia, o que quer dizer que o sol estava a sul; as sombras a norte, portanto. Ao ir-se pondo o sol, as nossas próprias silhuetas - bem desenhadas no chão, por se fazer um dia incrível - guiavam-nos sempre, muito certas, em direção a Cabeceiras. Mas esta viagem não foi assim tão suave! Calma… Para além do furo (que o Rodrigo reparou num abrir e fechar de olhos, ao estilo fórmula um), chegados a Guimarães, a Sara achava que já não tinha joelhos, mas ainda nos faltava mais de metade do caminho. A chegar a Fafe, entrámos sem querer numa via rápida [não digam nada à polícia!] e, ao demorarmos mais do que tínhamos planeado, o sol escondia-se por detrás das serras. A verdade é que já havia pouca luz na estrada, e não nos servia a lua, pois estávamos na sua fase errada… A páginas tantas, estávamos em montanhas que nunca mais paravam de subir e que já nem de bicicleta se faziam. Estávamos agora a pé, sem sol, e com algum medo (não infundado), de sermos abordados por uma matilha de lobos. O cansaço e a altitude, crescentes, combinavam-se na forma de incrementais calafrios, desmoralizantes. Nas grandes alturas, em que ofegar é a única forma de respirar, e as nuvens, abaixo dos nossos pés, nos faziam acreditar que aquela subida nunca mais teria fim, entrávamos, inesperadamente, pela malha urbana adentro, que as Terras de Basto exibiam, mesmo ainda nos montes, a escorrer, caminho a baixo, via Cabeceiras. Os travões da bicicleta do Rodrigo, que foram comprados numa loja de ciclismo com mais de cem anos na Maia, são vintage e, talvez por isso, guincham que é uma maravilha… A descida foi pontuada com longas notas intermitentes, bem enervantes, de borracha rija e alumínio barato. No fim de nove pedalantes horas, dormimos que nem pedras, na nossa grutinha de pedra; e foi a última vez. Há uns dias, a Catarina - amiga da Sara - veio-nos visitar com os pais. Vieram ver o terreno, que não fica nada longe de uma casa que têm em Chacim, a cinco minutos de bicicleta daqui. Já tinham ouvido falar de que andamos a trabalhar muito, e de que estava tudo a ficar bem bonito, e queriam averiguar a situação. Ao chegarem cá em baixo, começaram-se logo a despir. A temperatura é, de facto, bem diferente daquela que lhes gelava os couros durante o inverno, aos setecentos metros de altitude. Aqui, aos trezentos, e num vale bem mais arborizado do que as serras lá para cima, as coisas são mais meigas e gentis. Uma geada que se preze, fica o dia todo a queimar as verduras e a fazer cair as flores dos antecipados Prunus, coitados. Aqui, um friozinho que se veja azulado durante as primeiras horas da manhã, não dura mais que isso: algumas horas (e só de manhã) nalguns dias do ano apenas, e vai-se sempre antes que o sol beije as faces de todas as coisas verdes. Portanto, estamos numa liga mais leve, no que toca a enfrentar a firmeza do famoso “inverno nortenho”. Isto para dizer o quê? Que os pais da Catarina - um engenheiro e uma arquiteta - ao verem a casa; ao entrarem nela, e ao efetivamente começarem a pular sobre o soalho (para provar que estava de não se morrer nele), perguntaram-nos, surpreendidos, se tínhamos mesmo a certeza de que queríamos a continuar a viver numa furna… Eles achavam que o velho soalho da casa principal, embora mais usado que um hábito papal quinhentista, estava em muito bom estado e serviria, não só para suster o peso dos quatro cavalos que cá viveram, mas o nosso próprio e o das nossas muito minguadas tralhas. E foi assim que mudámos para a nova (velha, e verdadeira) casa. Em dois dias, abandonámos o palheiro, que tinha albergado umas quantas vacas. Passávamos, então, a ser como pessoas, no Carvalhal. Agora, com duas janelas para o mundo [o nosso habitáculo anterior não tinha abertura alguma], acordamos todos os dias com os avanços milagrosos da primavera. As giestas estão em flor, com aquele manto amarelo, embriagante, de cheiro doce tão sedutor; tudo cresce, espiga, refila, desponta e abunda; apenas os castanheiros, mais estivais, aguentam os seus botões, firmes, seguros, até que cheguem os dias mais quentes. No barraco em que dormimos até agora, as portas nem fechavam e faltavam-lhes grandes pedaços de madeira que, de podre, já se tinha convertido em solo a favor das silvas e dos fetos. Agora, para além de janelas, também temos portas (ainda que apenas uma tranque por dentro e faltem alguns vidros às janelas). Estas são as condições em que vivemos. Quando as descrevemos aos nossos conterrâneos, aqui em frente, na aldeia de Eiró, metade acha que somos os maiores, metade acha que somos um bocadinho parvos. A senhora Geralda - a tasqueira de cá da zona - diz-nos que não temos necessidade de comer as coisas que comemos; que em vez de comermos “ervas do chão”, deveríamos plantar couves e batatas. De facto, temos algumas couves galegas, que são tão deliciosas, e as batatas, daqui a nada, estão de se papar num bom caldo verde, mas é que nós gostamos mesmo das nossas magníficas “ervas daninhas”: temos sarralhas bem tenrinhas, e alguns dentes de leão aqui e alí, temos urtigas e lâmios (comicamente conhecidos por “chupa pitos”); as primaveras já nos alimentam desde janeiro; há labaças e angélcias mesmo à frente de casa; todos os muros ostentam os seus umbigos de vénus; as ajugas aparecem pelos prados lá em baixo fazendo frente às variedades de menta que persistiram o inverno todo, já se cheiram os orégãos frescos de longe e há azedas espalhadas por aí… O que não nos falta é comida por todo o lado. Sabemos que estas espécies são incrivelmente nutritivas e que nos fazem muitíssimo bem! As outras pessoas já quase nem as reconhecem, pois há muito que as expulsaram dos seus terrenos, infelizmente. Mesmo com as pequenas grandes diferenças a separar a nossa forma de vida da dos outros, temos gostado muito de visitar Eiró. Até muito recentemente, estávamos tão embrenhados no trabalho diário, que nem tínhamos tido grande tempo para lá irmos antes que anoitecesse. Agora, que os dias já ganharam um tamanho decente, sempre nos sobram uma ou duas horas para atravessarmos o rio mais belo que já se viu e convivermos um pouco com as pessoas que já cá viveram vidas inteiras. Cada um vai-nos contando a sua própria estória e, aos poucos, há toda uma figura que se monta daquilo que terá sido um passado áureo aqui da Quinta do Carvalhal. Muitos dizem-nos que “aquilo é que era um quinta!”; que produzia um montão de azeite e que as pipas de vinho não paravam de rolar caminho a baixo; dizem-nos que a fruta nunca faltava; que as laranjas eram as melhores, e que havia maçãs de cá da zona que a todos faziam salivar em anticipação. Hoje, após trinta anos de "abandono", esta terra chama-se Landra e, pelas nossas mãos, vai dando passos numa direção que muitos revêem como aquilo que esta terra já foi: um verdadeiro jardim, cheio de vida e de comida.
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Autores
Sara Rodrigues Categorias
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July 2024
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