diário
documentamos os meses que passam com os momentos que os merecem
ler sobre: Melhor do que ouro
Setembro foi o mês do nascimento da Sara, há trinta anos atrás. Mas este não deixou de ser um renascimento. Foi uma viagem chegar até aqui, perceber que tínhamos vivido toda a nossa vida encarrapitados em tijolo e cimento, suspensos no ar por vontade da modernidade e empurrados pelo progresso. Os trinta anos do Rodrigo foram passados assim - ainda em Londres - enquadrados por paredes retas, em Maio deste ano. Na altura já guardávamos cascas de ovos para que, depois de esmagadas, as pudéssemos pulverizar na nossa horta de metro quadrado. Já fazíamos compostagem e aplicávamos chorumes de consolda, borragem e urtigas, mas foi só depois de chegarmos à Landra que as verdadeiras poções começaram a borbulhar. Há doze anos atrás, fomos levados para fora das nossas (já grandes) cidades do Porto e do Funchal. À procura de voos maiores, pouco a pouco, fomos percebendo que o ar se sentia cada vez mais pesado. A vista pairava já sobre arranha-céus que competiam, lado a lado, a ver quem chegava lá primeiro. Percebemos que não era bem o céu que procurávamos e, mesmo sendo ateus, acreditámos que se calhar o paraíso ainda era possível noutro lugar. Trinta anos até sentirmos verdadeiramente a terra nas unhas e nas mãos; uma força inexplicável de matéria viva que nos impulsiona eufóricos de sol a sol para o dia seguinte; numa plenitude que não sente cansaço. Reparávamos agora que tudo à nossa volta existia tanto em si como em potência, numa verdadeira alquimia que transforma merda numa riqueza bem maior do que ouro. No dia doze festejámos com visitas: mães, bebés, amigos e um clã de cavalos à mistura. Foi-lhes outra viagem chegar até aqui, entre silvas e eras e pedras no percurso. Sentámo-nos, por fim, ao pé do rio de corrente fria, em que só alguns se aventuraram a entrar. Também eles se questionavam se tal vida era mesmo possível; depois das casas, dos trabalhos, das contas para pagar, dos pequenos para sustentar. Tanto para carregar. Seria certamente precário viver sem eletricidade, sem casa de banho, nem água quente, nem canalização. E ali nos encontrávamos, precariamente ambulantes, mais felizes e livres do que alguma vez podíamos ter imaginado. Como seria se aquilo que há para além do conforto seguro que nos venderam fosse melhor? Certo é que pode não ser propriamente fácil chegar até aqui. No final de contas, como sujeitos civilizados de uma qualquer nação, o mais provável é não nos serem concedidos os direitos e os poderes que nos possibilitem viver autonomamente e a cuidar de nós próprios. Mas mesmo sem terras que nos passem de traz; mesmo que não nos ponham à frente as ferramentas para o cultivo da nossa própria liberdade; podemos sempre começar por acreditar que uma vida melhor é possível. Acreditarmos é meio caminho andado para lá chegarmos. Aqui tudo começa e acaba, e volta a começar. Nada é supérfluo, nada está a mais. O essencial é a essência, e essa a terra nos traz.
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Sara Rodrigues Categorias
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May 2024
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