crónicas
vestimos as nossas reflexões com imagens dos momentos que as merecem
Click here toComo temos concertos agendados com o nosso grupo de música contemporânea (New Maker Ensemble), e temos todo um programa sobre ecologia a montar, recebemos necessariamente a nossa amiga (e nossa violoncelista) Roxie a ver se conseguíamos arranjar uns tempinhos livres no meio dos afazeres do campo, para ensaiar. Foi a primeira vez que fizemos música a sério aqui na Landra. Espero que as plantas, os animais e todos os microorganismos tenham gostado destas novas e estranhamente organizadas vibrações. Pelo caminho, também apanhámos a nossa amiga Maria Inês, que tinha acabado de vir de umas festas lá para baixo no Alentejo. Ao mudar de ares, mal chegou às nossas águas, despiu-se e meteu-se nua pelo rio adentro. Que coisa tão apetecível! Durante uma semana, fizemos todos os mesmo, todos os dias. Entretanto, com francas promessas de chuva, acalmaram-se as visitas, e tivemos que acelerar tudo o que eram obras na casa, antes que as chuvas de vera viessem, pesadas. Daqui adiante, a vida deu os primeiros passos à recolha. Não por completo, nem de uma só vez, mas já mudam os ares, e rodeiam-nos os sinais de que o verão passa por nós via sul. A Maria Inês acompanhou-nos enquanto ensaiávamos, o que não aconteceu assim tantas vezes… O campo em transição de cores e cheiros, a letargia do calor mais calmo, o sol mais baixo, os ventos outros, os frutos das fagáceas dirigindo-se ao chão. Os javalis já não se intrometem tanto com o nosso terreno. Cheira-lhes a animal; estamos aqui.
Durante os últimos tempos, as bolotas têm vindo a inchar, lentamente, ganhando forma, alongando-se. Quase que nem damos por elas nesse silencioso caminho em direção à terra. Só quando nos caem em cima da cabeça é que nos apercebemos de que o outono vem aí. Ainda é cedo para desatarmos a apanhá-las a todas, mas algumas já vão diretamente para os baldes de fermentação. Para já, como é normal, vêm com muito gorgulho. As que se seguem virão limpas e reluzentes. Contudo, as regras nem sempre são rígidas e, de carvalho para carvalho, já são muitos os híbridos que conseguimos identificar. As espécies, como nos disse uma vez Mark Spencer (um botânico forense londrino), não existem e, de facto, o que realmente acontece é que todos os seres se aproximam e afastam unitariamente uns dos outros num constante processo geracional de resposta ao meio. Ou seja, no nosso terreno temos, de certeza, exemplares do género Quercus que já nem são tanto robur, quanto os supostos mesmo Quercus robur de outras partes da península, da europa, ou mesmo do mundo. Isto para dizer que, enquanto uns ainda seguram as bolotas para as engordar, antes de engordarem os porcos (e os seus amigos humanos), outras já as soltam alegremente para o chão, algumas das quais se aprontam a germinar mal sentem os aromas do húmus à sua espera. Da folha aos frutos, a variedade de tempos, formas, cores e até sabores é estonteante, se perdermos algum tempo a observar rigorosamente tudo o que realmente se passa… A Irene (mãe da Sara) também nos veio visitar. Veio ver se a obra estava em condições. Parada, durante us dias, por causa das chuvas, fica a casa careca, esperando por uma eventual semana extra-estival. Gostamos sempre de ter a Irene por cá, mesmo que sejam visitas curtas. Vive confortavelmente no Porto e nem sempre quer subir para os montes… Os caminhos sempre ficam mais aprumados com a Irene por perto. Tudo se abre um pouco mais. Damos passeios e colhemos muitas hortaliças.
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Ok, estava frio. Mas frio, frio, não são graus positivos (o que é sempre positivo). Temos amigos italianos, que vivem nas montanhas de lá de cima - quase na Áustria - e que nos contam do que é rapar frio a sério. Esperar tipicamente vinte graus negativos todos os anos não é coisa que conheçamos de todo… No escuro conforto da nossa cova, contaramos dias para o natal, passando as horas da ceia em frente ao fogo. No natal, voltámos ao Porto para passar as festas de quarentena com a Irene (mãe da Sara) e com a sua amiga Carla. Surpreenderam-nos com uma boa oferta de várias árvores e arbustos de fruto. A meio de vários tipos de framboesas e outras bagas, a mais peculiar de todas, e que nos tem surpreendido pelo vigor e pela resistência às geadas, foi a “macieira dos pássaros”; uma curiosa variedade, entre Malus pumila e Mauls sylvestris, que dá uns perinhos muito pequeninos, perfeitinhos, e que os pássaros adoram devorar, quando mais nada aguenta aquela cor nesta altura do ano.
Assim como os pássaros, antes da hibernação, também nós vamos encontrando os últimos frutos que o terreno nos dá. É claro que as laranjas abundam nesta época, em que são precisamente mais necessárias, mas uma pessoa não pode passar a vida a engalfinhar citrinos… No lado mais balanceado das coisas nutritivas, já escassam as bolotas pelo chão. Entre nós e os javalis, os preciosos frutos dos nossos carvalhos vão-se consumindo. Muitas, têmo-las de molho, outras a fermentar (para que as taninas se acalmem); outras já estão moídas em farinha (com a qual o Rodrigo faz pães deliciosos), e agora estamos a experimentar fazer “café” com vários níveis de torragem diferentes. Vamos lá ver uma coisa, quando dizemos “café de bolota”, não é mesmo café! É mesmo bolota fermentada e torrada como se faz com o café! Bolota é bolota, não é café! Não tem cafeína, mas é possessora de uma abundância nutricional invejável, parecida com a da sua prima castanha (da família das fagáceas) mas ainda mais densa e complexa. Os romanos diziam que a bolota era o alimento dos povos invencíveis, sendo que tiveram sérios problemas em lidar com os persistentes povos galegos - aqueles tipos de sardas nas ventas e tranças nas barbas - que tinham a bolota como um dos seus alimentos principais! De setembro a outubro, as bolotas já caíam; caíam as que tinham bicho [Curculio elephas e outras espécies do género Cydia]. Cerca de metade das que apanhávamos tinham todas bicho, o que é normal. Estas espécies evoluíram em coexistência com as fagáceas (carvalhos, castanheiros, faias etc.), ou seja, os ciclos de reprodução das árvores e dos insectos estão sincronizados de forma harmoniosa. Os carvalhos produzem nunca menos bem por causa da presença destas pequenas larvas dentro dos seus frutos. Depois de terem comido bastante e de terem atingido a maturidade sexual, os gorgulhos saem da bolota - que já terá caído no chão - para se enterrarem, e lá esperarem pelo próximo ano. Isto acontece tudo antes de novembro, por isso, a partir daí, as bolotas vêm quase todas sem bicho; limpinhas, intocadas, relusentes que até parece que foram polidas! Isto, pois os bichinhos já trataram dos seus negócios todos e agora fica a árvore, sozinha, a produzir bolotas que, com alguma sorte, poderão um dia vir a ser grandes quercus centenários. Atenção, que já vi germinarem algumas bolotas que tinham sido furadas por bicho. Deram origem a carvalhos bem saudáveis. Em suma, o bicho não faz mal nenhum mal à produção! Aliás, até o pode melhorar nalguns aspetos... Aprendemos com o galego César Lema Costas que a bolota fica com propriedades nutricionais ainda mais interessantes se tiver (ou tiver sido visitada por) bicho. Basicamente, descem os açúcares e as gorduras, sobem as proteínas. A coisa fica muito próxima do perfil destes “novos” super-alimentos que aparecem nas revistas e na televisão a toda a hora ["Para emagrecer!", "Bons para a memoria!", "Contra o Covid!"]. O nosso café, ou mesmo a farinha de bolota têm, de facto, sido ligeiramente mais gabados por todos aqueles a quem oferecemos as nossas iguarias, precisamente nos tempos do bicho. Em chávenas pequeninas, aquela bebida escura, quente e saborosa, de textura aveludada e cremosa, a muitos faz lembrar caramelo, cacao e alfarroba, cevada da boa, chicória ou até mesmo café, daquele mesmo bom, adstringente que baste, nunca demasiado torrado, com uma acidez controlada e de oleosidade naturalmente aromática. O pão, que sempre arregala quem o mete na boca, tem trazido à mesa muitas boas conversas sobre quão bom é poder ter terra nas entrenhas. Quanto à integralidade dos nossos produtos, pedimos a todos os nossos amigos vegetarianos e vegan que compreendam que a naturza não quer ter nada a ver com segregação de espécies. Talvez mais que tudo, a escala importa... |
Autores
Sara Rodrigues Categorias
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Histórico
Dezembro 2021
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